Quatro anos após execução de Marielle Franco, mandante do crime continua impune
14 de março de 2022 - 10h38
Marielle Franco, presente!
Quem mandou matar Marielle Franco e por quê?
Por Francirosy Campos Barbosa
Há quatro anos, Marielle Franco era assassinada junto com seu motorista Anderson Gomes. Em 14 de março seu carro foi alvejado por 13 disparos de uma pistola 9 milímetros. A tristeza se abateu em todos nós que lutamos por Direitos Humanos. A luta pela dignidade humana é pauta de nossas pesquisas, lutas e produção de conhecimento.
O pensamento decolonial mexe nas estruturas de homens brancos, heterossexuais, eurocêntricos e ricos. Nossos problemas de classe, raça e gênero viam em Marielle Franco a representatividade de uma mulher negra, lésbica, favelada. Eleita vereadora da cidade do Rio de Janeiro pelo PSOL, Marielle quebrou as barreiras de dominação, ousou ser. E isso lhe custou a vida em 14 de março de 2018.
Na madrugada do dia 15 escrevi, para acalmar a dor que sentia, o texto: É pela vida das Mulheres: Marielle Franco, Ahed Tamimi e todas nós.
Sentia uma dor no corpo que não conseguia explicar, apenas expressar pela música de Chico Buarque: Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego…
Naquele dia, sabia que algo de muito ruim ainda estava por vir, e veio, com a eleição de um presidente que pauta seu discurso há décadas pela violência de gênero, racismo e homofobia. Tudo que há de mais cruel ouvimos nas expressões desse presidente:
“Ela não merece ser estuprada, porque é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria. Eu não sou estuprador, mas se fosse, não iria estuprar porque não merece”, afirmou referindo-se à deputada Maria do Rosário, PT-RS.
“O filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um ‘coro’ ele muda o comportamento dele. Tá certo? Já ouvi de alguns aqui: ‘Olha, ainda bem que levei umas palmadas, meu pai me ensinou a ser homem.’”
“Eu sou favorável à tortura, tu sabe disso… O erro da ditadura foi torturar e não matar.”
A vereadora executada combatia todas essas expressões e formas de pensamento. Marielle era socióloga, formada pela PUC-Rio e mestra em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense, a UFF.
Com Marcelo Freixo, coordenou a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro). Marielle Franco foi a quinta vereadora mais votada no Rio de Janeiro, nas eleições de 2016, com 46.502 votos.
Um dia antes de ser assassinada, ela escreveu em seu Twitter: “Mais um homicídio de um jovem que pode estar entrando para a conta da PM. Matheus Melo estava saindo da igreja. Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”
Marielle Franco era a representatividade de mulheres negras que são as mais afetadas pelo racismo e violência de gênero em nosso país. Um país escravocrata que tem suas raízes no racismo estrutural. Era essa voz que foi silenciada. Só quem nasce negro, sabe o que isso significa em uma sociedade pautada pela violência e exclusão.
Os jovens que mais são assassinados na nossa sociedade são os negros, os que menos chegam à universidade são os negros. O cruzamento entre classe e raça afasta ainda mais esses jovens do espaço acadêmico.
Na Universidade de São Paulo são 15% de alunos negros, 2% de docentes negros. Sou uma docente que teve poucos alunos negros, pardos, nenhum indígena, e quando isso chega à pós-graduação é praticamente inexistente sua presenças.
O psicólogo Lucas Motta Veiga escreveu: “Como negros, vivemos no exercício de driblar a exaustão e de não sucumbir à tristeza que este mundo branco gera em nós. Para nós não há saídas fáceis, nem rotas de fuga tranquilas. Há um trabalho permanente de confronto com o mundo, confronto que se dá simplesmente por existirmos. Ignorar o confronto é uma forma de resignar-se, um jeito de morrer aos poucos, bem devagarinho, enquanto o racismo vai sugando nossa energia vital. Olhar de frente para o confronto, assumi-lo, é espalhar granadas por todo o tecido social, provocar explosões micro e macropolíticas, desestabilizar a política, a economia, a universidade, a rua, a religião, a mídia.”
Marielle sabia que carregava em seu corpo e em suas ações a representatividade de pessoas negras, do mesmo modo que sei que carrego a representatividade de mulheres muçulmanas que usam hijab (lenço). Nossos corpos muitas vezes ultrapassam o dito, são expressões performáticas sem que mencionemos nossas lutas.
Mas enquanto cidadãos e intelectuais precisamos fazer mais para acabar com as divisões de nossa sociedade. É preciso que negros ocupem espaços universitários, políticos e públicos. A política de cotas ainda é o melhor caminho para apoiar grupos quilombolas e suas formas de resistência.
Nesta data de tristeza e saudade de Marielle e Anderson é preciso seguir contabilizando os dias e a ausência de respostas concretas sobre o caso.
Eliane Brum escreveu neste domingo, 13, em seu Twitter: “1.460 dias. Quem mandou matar Marielle? E por quê?”
Hoje, 14 de março, já são 1.461 dias, e continuaremos a perguntar: Quem mandou matar Marielle? E por quê?
2022 é ano de eleições, que bom seria ver o Brasil com muitas candidatas como Marielle, meninas negras, fortes e potentes em suas lutas, para mudar a estrutura brasileira de opressão. E transformá-la em uma sociedade mais justa e igualitária para todas, todos e todes.
Seguimos na luta por todas as mulheres que morrem diariamente neste país, mas seguiremos fortes com a memória da luta e resistência que a vereadora Marielle Franco nos deixou, contra a colonização do nosso pensamento e dos nossos corpos.
“…aprendemos desde cedo que nossa devoção aos estudos, à vida do intelecto, era um ato contra hegemônico, um modo fundamental de resistir a todas as estratégias brancas de colonização racial…”, escreve a ativista feminista, bell hooks, em Ensinando como transgredir: a educação como prática da liberdade.
Que mais transgressões como esta vejamos espalhadas pelo Brasil.
Francirosy Campos Barbosa é antropóloga, docente no Departamento de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo) no campus de Ribeirão Preto, pós-doutora pela Universidade de Oxford, na Inglaterra, coordenadora do Gracias (Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes), autora entre outros livros de Hajja, Hajja – a experiência de peregrinar e diretora do documentário, Allah, Oxalá na trilha Malê, entre outros. E-mail: franci@ffclrp.usp.br