Participação popular é decisiva para reconstruir país e superar retrocesso
15 de março de 2022 - 09h36
A que horas ele volta?
Por André Rego Viana
Parte da sociedade brasileira espera sempre a volta de D. Sebastião. O eleitorado à direita vê seu césar de barro desfazer-se na cadeira presidencial e o eleitorado à esquerda sonha com a volta dos anos Lula. Em ambos os espectros o mito do herói salvador, embora incomparáveis em história e estatura política.
As pesquisas eleitorais apontam hoje para a remoção do atual mandatário, mas as condições socioeconômicas do próximo mandato presidencial são muito diferentes daquelas encontradas 20 anos atrás e não dão margem a ilusões: será um período duro, de luta renhida pela apropriação e direcionamento do fundo público.
O ornitorrinco de mestre Chico de Oliveira mostrou uma face horrenda ao longo dos últimos anos. Junto à hegemonia do setor financeiro, que nunca se tentou confrontar, vimos voltar a dar a tônica o capitalismo de rapina.
A acumulação primitiva de capital da expansão da fronteira agrária, da mineração desregulada, do garimpo. Banditismo travestido de negócio.
O sorridente centro-oeste se faz com a marca da destruição do meio ambiente e dos povos originários. O pouco de Estado vai sendo desmontado e se tornando cada vez mais disfuncional. A “máquina de moer gente” descrita por Darcy Ribeiro retorna seu sentido glorioso como projeto nacional.
Mais do que o desenvolvimento truncado, o uso da imagem do ornitorrinco deve nos lembrar que a crença no desenvolvimento linear, teleológico, para um futuro brilhante de democracia e justiça social é uma quimera.
Cada mudança realizada representa ganho para algum grupo e, normalmente, perdas para outro. A situação do “ganha-ganha” como se descreveu o período lulista é rara, mas mesmo no processo de crescimento em que todos se apropriam de partes dos ganhos, alguns grupos ganham mais do que outros e, portanto, há perdas de posições relativas.
Assim, a parca distribuição de renda ocorrida no período petista possibilitou um ganho relativo para as camadas mais pobres como apontado pelos dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) e, na boa expressão de André Singer, “cutucou a onça com vara curta”, gerando uma reação que, pelas estimativas atuais, apontam perdas para as camadas mais pobres maiores do que as conquistas dos treze anos petistas no período desde o golpe contra Dilma.
Vimos ressurgir desde 2016 a fome e a miséria e descobrimos horrorizados (ou tomamos consciência do que no fundo já sabíamos e insistíamos em esconder de nós mesmos?), que parte de nossos concidadãos se apraz com esta situação, ainda que hipocritamente clamem a deus pela alma dos pauperizados.
Nossas classes médias se vingam das perdas relativas de renda, dos pobres ousando viajar de avião, dos filhos de pobres tendo acesso à universidade pública, do período anterior com o espírito de capitães do mato, revanche de verdugos sedentos de sangue dos pobres, melhor se negros e, em especial, se índios.
O que fará D. Sebastião quando voltar? As condições econômicas do ciclo de commodities de duas décadas atrás, que possibilitaram o crescimento com distribuição de renda, não estão mais dadas.
Antes, convivemos com pressões inflacionárias advindas da pandemia e agora da guerra. Na arena internacional caminhamos para um período de conflito entre os impérios norte-americano e chinês cuja resolução dificilmente será rápida ou pacífica.
O pouco que resta de nossa indústria, com raríssimas exceções, foi ou está em vias de ser desmantelada e o fazendão é cobiçado apenas como fornecedor de commodities agrícolas e minerais.
No front interno os desafios políticos são também imensos, pois o que se opõe hoje são pólos de civilização e barbárie. A pequena burguesia urbana, fazendeiros, garimpeiros e asseclas também não se tornarão mais tolerantes da noite para o dia.
A política de conciliação, tão típica de Lula, cedendo a tais grupos chancelaria o processo em curso de entrega do meio ambiente e povos tradicionais à sanha da espoliação primitiva e teria um efeito parco no urbano com políticas redistributivas limitadas pelo orçamento federal desmantelado.
Nos últimos seis anos o que vimos se afirmar foi mais do que o espírito nacional do fazendão, a colônia que deu tão certo como colônia que se recusa a ser país, se recusa a vir a ser nação, e o faz com uma violência inaudita, é a refundação de um Brasil que se quer feitoria.
A pergunta posta em nosso título é, portanto, ilusória, idealista e idílica. Repousa na busca do herói e nega o papel dos homens na construção da sociedade. Aliena desta sociedade a construção do político, a afirmação da medida comum como proposta por Rancière.
De nada nos adianta a volta de D. Sebastião, de Zumbi, Vargas ou Lula. O acerto de contas necessário é com nossos demiurgos, com um projeto de país que hoje se afirma na negação dialética como não-país, com uma não-burguesia, com um não-projeto nacional.
A possibilidade de superação dessa limitação está não num indivíduo, mas na construção da política pelo conjunto dos seres humanos e isto vai muito além do que votar numa determinada data e a posse de alguém menos nocivo.
André Rego Viana é economista e doutor em Sociologia pela USP (Universidade de São Paulo)