País está fraturado e eleição pode não ligar ossos partidos, afirma professor da UFRJ
30 de março de 2022 - 12h21
A aposta eleitoral versus a ideologia
Por Mauro Luis Iasi
A aposta de um setor das classes dominantes e do centro esquerda é que o profundo desgaste de Bolsonaro, por conta de seu desastroso governo, dos ímpetos golpistas e a ofensiva midiática, seja suficiente para derrotá-lo eleitoralmente.
No caso de parte da direita a aposta é que tal desgaste viabilize a mítica terceira via, enquanto que a centro esquerda parece acreditar que o carisma de sua principal direção é suficiente para liquidar a fatura, talvez ainda no primeiro turno e, se for o caso, no segundo turno.
O problema desta aposta é que parece desconsiderar a questão da ideologia e como ela tem operado no cenário político mais recente, reduzindo tudo à dinâmica matemática do jogo eleitoral e das alianças.
Como sabemos, a ideologia como pensava Gramsci funciona como uma espécie de cimento que une as diferentes dimensões econômicas, políticas, sociais e culturais de uma sociedade, ou como pensa Zizek, é uma mediação entre os indivíduos e o real que torna possível a vivência de uma realidade em si mesma eivada de impossibilidades.
Para Marx e Engels, a ideologia opera por meio de cinco processos interligados: toda forma ideológica oculta as determinações do fenômeno, naturaliza aquilo que é social e histórico, inverte ou apresenta como real aquilo que é inversão, é o exercício de justificar e legitimar o real e, por fim, apresenta o particular como se fosse universal.
Para os pensadores alemães, a ideologia assim opera para legitimar e reproduzir a dominação de uma classe sobre outra.
Muito bem, as classes dominantes no Brasil não têm apenas uma ideologia sobre a base comum das relações sociais de produção e formas de propriedade que constituem a substância de nossa sociedade, a ideologia pode assumir várias formas, ora o liberalismo, ora na defesa da centralidade do Estado, ora autoritária, ora democrática, ora conservadora e ora progressista.
Estas diferentes formas respondem à dinâmica da luta de classes, ou seja, aos momentos de ascenso ou defensiva dos trabalhadores, às crises do capital ou aos momentos da conjuntura em que as velhas formas de domínio precisam ser alteradas para manter sua função essencial que é garantir as condições da acumulação de capitais.
A crise que atingiu seu ponto agudo em 2008 produziu reflexos no Brasil e na luta de classes em 2013, 2015 e 2016, levando ao esgotamento do pacto social levado a termo pelos governos petistas e exigindo uma alteração na forma política. Aqui entra a ideologia em todas as dimensões apontadas por Marx. Se não, vejamos.
Era necessário ocultar as verdadeiras determinações da crise que encontra sua raiz na própria dinâmica da acumulação, apresentando-a como fenômeno natural que ocorre de vez em quando e que nada podemos fazer.
Ao contrário de uma crise econômica do capital, ela tem que ser apresentada como uma crise política, cuja natureza é a corrupção, também esta apresentada como natural e inevitável.
O golpe de 2016 e seus desdobramentos precisam ser ocultados e desta forma se constroem justificativas que buscam legitimar a ação oportunista, no qual o direito ocupa lugar de destaque.
A presidente eleita não seria derrubada pelo fim do pacto e o rearranjo de forças políticas para operar as necessidades do grande capital monopolista, que aliás sustentava o governo que agora derrubava, mas a ofensa abstrata à lei por “pedaladas fiscais” ou pelo novo conceito jurídico “pelo conjunto da obra”.
Tudo tem que aparecer no reino da ideologia como uma necessidade do país, da ordem, da nação, da pátria, abstrações universalizantes que escondem o caráter particular dos interesses particulares envolvidos.
Ocorre que a ideologia tem seus descaminhos e surpresas. O bloco dominante esperava que a velha forma, o pacto, fosse substituído por uma forma mais adequada e legitimada que lograsse a estabilidade política necessária à imposição de reformas brutais contra os trabalhadores.
No entanto, na fogueira acesa pela intransigência, pelo preconceito, pelo anticomunismo, pela grosseira manipulação de massa, pelo casuísmo de manobras jurídicas espúrias, assentava em profundo descontentamento, ressentimentos acumulados e perspectivas frustradas que encontravam suas raízes nas massas populares e nos setores médios.
Este caldo de cultura favorecia que a ideologia de extrema direita frutificasse e ganhasse a consciência imediata de um amplo segmento da sociedade.
Como vimos, a ideologia é uma espécie de cimento ou uma mediação que permite aos indivíduos a relação com um real que se apresenta de forma hostil e estranhado.
Como compreender a crise, como lidar com as expectativas frustradas, como lidar com a realidade do aumento das passagens, da violência policial, das desocupações, de um país que festeja a riqueza de poucos como heróis enquanto joga migalhas para políticas públicas essenciais?
Uma vez que a ideologia encobre determinações e legitima o domínio de classe sob o manto de abstrações, tais como Estado democrático de direito ou “um país de todos”, ocorre um choque entre o discurso ideológico e o real.
A extrema direita ocupa este lugar, não para revelar as determinações e compreender a crise, mas para encobri-la sob uma nova forma ideológica da mesma substância que entrava em crise.
O Brasil está em crise pela condução de comunistas, contra a família, a moral e os bons costumes, uma quadrilha que saqueava o país através da corrupção, impunha ideias esquerdistas pelo marxismo cultural nas escolas inspiradas pelo globalismo e treinava jovens para serem homossexuais com cartilhas e mamadeiras de piroca.
Não se trata de um mero folclore ridículo, mas do exercício do irracionalismo como arma política. A ideologia se apresenta não para constituir um discurso articulado como forma de se relacionar com um real caótico e sem sentido, mas como um discurso que se funda na aleatoriedade, na irracionalidade e na ausência de sentido de um real em crise.
Agora, diante dos resultados catastróficos da irresponsabilidade da direita e da extrema direita, expressos na crise econômica, na instabilidade política, numa brutal crise social pelo desemprego e pela fome, pela perda de respeitabilidade internacional, as classes dominantes procuram uma nova forma na qual possa se expressar a ideologia.
Seus indícios são as renitentes afirmações que as instituições políticas funcionaram perfeitamente, seja na limitação e controle dos abusos de um executivo tresloucado, seja pela pacifica continuidade dos trabalhos parlamentares votando tudo que o capital queria, seja pela vigilância atenta dos meios de comunicação e, finalmente, pela virtude da democracia que através das eleições pode julgar um governo e trocá-lo se assim o povo desejar.
O risco desta aposta, que pode como boa ideologia abrigar sob suas asas desde empedernidos reacionários golpistas até santos salvadores da centro esquerda, é que desconsidera aquelas raízes mais profundas da ideologia que ocupou o lugar do manto legitimador de uma ordem em ruínas.
Os principais atores fazem alianças e se posicionam para o jogo eleitoral, acreditando que o tempo de televisão, as verbas vultuosas dos seus tradicionais financiadores e a desinformação sistemática operadas pelos meios de comunicação lhes favorecerão.
O país está fraturado e o bálsamo eleitoral não pode ligar os ossos partidos do corpo social. A intransigência, o preconceito, o irracionalismo, a violência ainda ocupam um lugar como expressão ideal de um real pleno de contradições.
Esta vertente pode não aparecer nas pesquisas de intenção de voto, nas avaliações de governo. Operam como um sentimento vago e invisível que pode aflorar como surpresa, seja eleitoralmente, seja como rebelião que sustenta alguma aventura golpista.
Um eventual segundo turno pode não apenas colocar frente a frente dois candidatos, mas duas expressões de um país fraturado, duas ideologias que encontram igualmente materialidade no corpo cindido de um país em crise.
Não se trata, portanto, de uma eleição, trata-se de uma crise econômica, política, social e cultural que encontra sua expressão em uma volta imaginária a um passado ou numa crítica a tudo que está aí que encobre o golpismo da extrema direita como se fosse uma crítica antissistema.
O que fica fora deste embate, como uma vitória antecipada da ideologia, são os debates sobre o Brasil, a avaliação dos caminhos escolhidos que nos levaram a este impasse, a necessidade urgente de superar a forma política em frangalhos, as medidas urgentes a serem tomadas contra os perversos efeitos da crise que os que se apresentam como alternativa criaram. Seja qual for o resultado das eleições, a ideologia venceu.
Mauro Luis Iasi é professor associado da Escola de Serviço Social da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas (Nepem), educador popular do Neop 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB.