Exército brasileiro praticou genocídio contra população na Guerra do Paraguai; generais eram racistas
03 de maio de 2022 - 15h54
A Guerra contra o Paraguai
Por Lincoln Secco
Em 1864 o Império do Brasil interveio no Uruguai contra o Partido Blanco, cujo presidente era aliado do governo paraguaio.
Com a ascensão do Partido Colorado, aliado aos interesses brasileiros e argentinos, a soberania paraguaia foi colocada em risco.
O governo paraguaio viu-se geograficamente isolado, sem acesso ao Porto de Montevidéu para realizar grande parte do seu comércio internacional.
Além disso, ficou sob ameaça de sofrer uma intervenção como a que o Uruguai sofrera.
Assim, o Paraguai atacou em 1865 o Mato Grosso. Iniciou-se a maior guerra da história da América Latina.
O país confrontou o Uruguai (agora sob a administração inimiga), o governo argentino de Mitre e a monarquia escravista brasileira.
O resultado foi o genocídio que exterminou quase 2/3 da população paraguaia, números que são questionados por historiadores brasileiros de esquerda e direita, mas confirmados pelo historiador paraguaio Ronald León Nuñez em seu livro A Guerra Contra o Paraguai em Debate.
Ronald León Nuñez fez sua tese de doutorado em História Econômica na USP e, em parte, o seu livro retoma a tese, acrescido de uma avaliação do debate historiográfico sobre a guerra contra o Paraguai.
O título já é importante para os brasileiros, já que todos aprendemos na escola que se tratava de uma guerra do Paraguai provocada por Solano Lopez, tratado até por grandes historiadores como Sérgio Buarque de Holanda como megalomaníaco e louco.
Debate Historiográfico
Imediatamente após o final do conflito em 1870, emergiu uma historiografia liberal conservadora que justificou a guerra contra o Paraguai em nome da civilização contra a barbárie e da liberdade contra o autoritarismo de um ditador louco e sanguinário.
Contra ela, ergueu-se a historiografia nacionalista favorável ao Paraguai. Em sua primeira versão, ela assumiu tons patrióticos, mitificou o país agredido como modelo de desenvolvimento econômico autônomo e o ditador Solano López como herói.
Em sua segunda versão, informada agora por teses de inspiração marxista, desenvolvimentista e terceiro mundista, ela inseriu a guerra no contexto internacional e explicou as ações da Tríplice Aliança em função do imperialismo britânico.
Todavia, sem as devidas mediações aquela historiografia produziu uma interpretação mecanicista e reduziu as personagens históricas a títeres do governo britânico.
Mais recentemente, a historiografia liberal conservadora foi renovada com pesquisas em fontes primárias.
Ela também modificou sua imagem ao se aliar com veículos de mídia e editoras, propor-se como neutra e contar com a simpatia das Forças Armadas do Brasil.
Deu ênfase a uma abordagem empirista e, ao recusar a noção de totalidade, reduziu a guerra a um conflito regional sem vínculos com interesses capitalistas internacionais.
A ausência de uma teoria declarada oculta o ecletismo e a opção consciente ou não pelo pós modernismo. Já a sua suposta neutralidade não passa de uma tomada de partido pelo liberalismo.
Longa Duração
Ronald León Nuñez inova ao adotar uma perspectiva de longa duração que nos permite explicar a guerra contra o Paraguai enquanto fechamento de um ciclo de independências latinoamericanas sob a égide da nova dependência econômica ao imperialismo, conforme afirma o historiador Rodrigo Ricupero no prefácio.
O fim do modelo semi-autárquico paraguaio destruiu o único país que contrariava a persistência do sentido da colonização e um ciclo de independências liberais conservadoras.
O autor passa por uma boa discussão sobre modo de produção e relações de produção, resgata nosso clássico Caio Prado Júnior e o notável historiador argentino Milcíades Peña, revelando traços de permanência desde a geografia até aspectos econômicos, sociais e culturais.
A colonização de uma região sem metais preciosos ou gêneros tropicais demandados pelo mercado europeu fizeram do insulamento geográfico um elemento fundamental da formação histórica paraguaia.
Apesar de compartilhar com outras áreas da colonização hispânica a escravidão negra, o trabalho compulsório indígena¹ e outras formas de exploração, o Paraguai exibia uma situação periférica dentro do espaço colonial.
A produção para subsistência correspondia a quase 60% da superfície cultivada, segundo o Ronald León Nuñez.
Também a mestiçagem étnica foi uma característica da maioria da população desde o início do processo colonizador espanhol.
Na sua independência, o Paraguai teve que lutar contra a burguesia das Províncias Unidas do Rio da Prata (tanto unitária, quanto federalista) e iniciou um processo de acumulação de capital em condições de relativo isolamento.
José Gaspar Rodríguez Francia exerceu o poder desde a proclamação da República em 1813, sendo substituído por Carlos Antonio López e este em 1862, por Francisco Solano López.
Sem uma forte burguesia associada ao capital estrangeiro como a portenha, que liderou a formação da Argentina, a frágil burguesia paraguaia amparou-se no Estado que controlou o comércio da erva-mate, tabaco e couro, principais produtos do país.
Nuñez demonstra domínio do método dialético quando argumenta que o poder político atendeu ao setor empresarial voltado ao mercado interno e que “a debilidade da burguesia nacional, ainda em formação, fez com que a máquina estatal [burguesa], para compensar essa fragilidade estatal, cumprisse um papel que, normalmente, caberia a uma classe dominante consolidada”².
Ele combina muito bem as determinantes estruturais e as circunstâncias históricas que permitiram um tipo diferente de desenvolvimento das forças produtivas sob o comando de uma burguesia protecionista.
Segundo o autor, 80% das terras em 1840 haviam sido nacionalizadas e o Estado controlava o comércio exterior, autorizava cada lote importado, impunha taxas e grande parte das exportações eram produtos estatais.
O governo proibia a saída de metais preciosos da mesma forma que a política mercantilista europeia do passado.
Ao lado do setor privado, tanto da pequena quanto da grande propriedade, havia terras arrendadas diretamente pelo Estado, Estâncias da República e terras comunais ou municipais.
Embora o Paraguai tenha abolido oficialmente a escravidão em 1869, esta era residual. A “lei do ventre livre” paraguaia é de 1842 e havia escravos estatais.
O Paraguai não era um Estado escravista como o Brasil. Ainda assim, o autor não recai na tese anacrônica de que seu país foi uma nação plebeia, proto-socialista, industrializada ou qualquer coisa do gênero.
Ainda que a escravidão não fosse o eixo fundamental da extração de excedente econômico, a sua própria existência legal revela que os governantes não tinham qualquer traço ideológico de esquerda.
O monopólio estatal da produção e comercialização da erva-mate, principal produção do país, não impedia que os favorecidos fossem principalmente os Lopez e seus aliados.
Se houve inegável avanço das forças produtivas e até culturais, o ponto de partida foi muito atrasado.
O Paraguai não era uma potência regional e jamais ameaçou militarmente a existência de seus vizinhos.
O problema geográfico de um país sem acesso ao mar exigia a liberdade de navegação no Rio Paraná.
Com a queda de Rosas na Argentina e o reconhecimento da independência paraguaia por aquele país, cresceu o comércio exterior, mas não arrefeceu o controle estatal, o que incomodava muito os negociantes britânicos.
Havia tarifas altas de importação sobre artigos que tinham similares nacionais. O teórico alemão List, aliás criticado por Marx por ser um defensor da burguesia alemã, se sentiria em casa no Paraguai dos López.
Em síntese, surgiu uma anomalia na América do Sul: um modelo protecionista de desenvolvimento burguês em meio à hegemonia do liberalismo econômico.
A burguesia paraguaia, numa situação isolada, teve que usar o Estado como fonte de acumulação e por isso, viu-se obrigada a adotar um sistema estatista e independente, contrário ao que vigorava no resto da América do Sul, que era livre-cambista e semicolonial.
Como mostra o autor, isso não fazia do Paraguai um país desenvolvido e industrializado e nem de sua burguesia um grupo interessado em outra ordem social.
Era uma burguesia que procurava abrir as vias do comércio exterior, para aumentar a exportação de produtos primários e importar tecnologia europeia.
Guerra
O autor não nega o papel da burguesia na resistência paraguaia, mas mostra que ela defendia um modelo econômico que se confundia com seus interesses de classe.
Nesse sentido estrito ela era nacional. Mas a verdadeira resistência foi popular.
Ao contrário do que declarou a historiografia liberal conservadora, a população não se manteve firme por medo de um ditador, mas porque defendia interesses materiais de que desfrutava no seu país e percebeu que perderia tudo ao ver-se reduzida a um povo conquistado por estrangeiros.
León Nuñez consegue recolocar a burguesia paraguaia no seu devido lugar e tamanho, sem negar-lhe seu papel na resistência nacional, mas sem ocultar sua contradição insanável com o seu próprio povo.
Além disso, o autor não projeta no passado um líder nacionalista e proto-socialista como fez a historiografia comunista e nacionalista, a qual precisava encontrar na história uma justificativa para a estratégia etapista de aliança com a burguesia e de apoio a governos de frentes populares.
López não foi um Allende e nem o Paraguai um país pré-socialista e desenvolvido.
Ronald León Nuñez é um militante internacionalista e contrapõe explicitamente sua tomada de posição historiográfica à atual vertente neoliberal.
Obviamente, esta se diz neutra e acusa aquela de ideológica. Não seria neoliberal se dissesse o contrário.
O autor não deu muita importância para o prefixo “neo”, mas ele comporta uma mudança significativa: no século 19 o Conde D’Eu, Mitre, Flores, Caxias e os representantes britânicos não temiam dizer que defendiam interesses materiais e que não estava em causa livrar o povo paraguaio de uma ditadura. Não eram neutros.
Imperialismo
Uma das contribuições decisivas do livro de Nuñez foi recalibrar teoricamente a interpretação do papel do imperialismo britânico na guerra.
Para tanto, ele se livrou do mecanicismo dos estudos de outros autores de esquerda, debateu as relações entre o capital e o Estado e apresentou fatos e argumentos irrecorríveis que demonstram o interesse e participação britânicos no conflito.
Vale a pena ler no livro a narrativa sobre o financiamento, os empréstimos, a venda de armas livremente nos portos brasileiros, participação de representantes britânicos nas decisões do governo argentino etc.
Para o autor, o capital não só tem ideologia, como escolheu o lado que lhe era mais favorável no conflito, já que não quis fazer negócios com o Paraguai.
E isso não se restringiu aos interesses privados, mas teve a autorização tácita da Grã Bretanha. O modelo econômico paraguaio não favorecia a penetração do capital britânico.
Após a guerra os britânicos abocanharam grande parte das terras estatais que foram privatizadas. A maioria dos trabalhadores foi reduzida à condição de sem terra.
O capital estrangeiro se apropriou dos recursos naturais e das empresas e os países vitoriosos impuseram uma dívida colossal e impagável ao Paraguai. Até a ferrovia estatal foi privatizada.
Ronald León Nuñez não escreveu uma obra patriótica. Suas simpatias, claro, estão com a nação oprimida.
Mas ele não oculta a tirania de López e nem a natureza da burguesia paraguaia. E revela que houve resistência contra a guerra nas populações dos países da Tríplice Aliança, embora cite isso de passagem.
Reproduz os discursos racistas dos generais brasileiros, embora não dê atenção à resistência pontual dos “voluntários da pátria” brasileiros contra o recrutamento forçado³.
O autor também debateu o massacre da população paraguaia. Em primeiro lugar, mostrou as razões da historiografia negar ainda hoje que houve um genocídio, o que implicaria reparações econômicas e históricas ao povo paraguaio.
Em segundo lugar, informa como os políticos e militares da época encararam aquela guerra. Sarmiento, que substituiu Mitre, deixou palavras inacreditáveis sobre a suposta inferioridade racial dos guaranis. Ele simplesmente defendeu o seu extermínio.
Caxias tinha plena consciência de que estava promovendo o extermínio da população paraguaia.
Em terceiro lugar, o autor revisita a demografia paraguaia para reafirmar que houve um genocídio.
A Guerra contra o Paraguai em debate é um ponto de inflexão na historiografia e distribui as armas teóricas que a esquerda necessita para superar na prática o maior crime já cometido pelas burguesias independentes da América do Sul com apoio do imperialismo.
- A encomienda foi a extração de excedente na forma de renda trabalho. A coroa terceirizou por duas gerações ao encomendero o direito de explorar o trabalho indígena e pagar anualmente à metrópole uma taxa por cada trabalhador a seu serviço. O mandamiento era o recrutamento forçado para obras públicas ou de interesses pessoais de autoridades reais. Tratam-se de um trabalho compulsório análogo à escravidão.
- Nuñez, Ronald L. A guerra contra o Paraguai. São Paulo: Sunderman, 2022, p. 231.
- A esse respeito ver Tavares Alves e Silva, Beatriz. Os Impactos da Guerra contra o Paraguai na Província de São Paulo (1864-1870). São Paulo: USP, dissertação de mestrado, 2021.
Lincoln Secco é professor de História Contemporânea da USP (Universidade de São Paulo), membro do GMarx USP (Grupo de Estudos de História e Economia Política) e autor de A Revolução dos Cravos (Alameda Editorial).