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Consciência de classe é fundamental para superar momento atual, destaca professor da USP

16 de março de 2022 - 15h02

Consciência de classe em O Leopardo

 

Por Lincoln Secco

Recordo-me que nas páginas de debate da imprensa corporativa dos anos 1980, deparava-me com algum político referindo-se ao romance O Leopardo, de Giuseppe Tomasi de Lampedusa. Ou talvez ao filme de Luchino Visconti (1963). Antes de se tornar um best seller, o livro foi recusado por duas grandes editoras italianas, Einaudi e Mondadori. Foi publicado pelo editor comunista Giangiacomo Feltrinelli (1958), o “aristocrata subversivo”[1].

Nos anos 1980 vivíamos uma vez mais a oportunidade histórica de uma Revolução Democrática em curso, diluindo-se na transação com as classes dominantes. Foi a primeira vez que O Leopardo chamou-me a atenção. Agora o releio em outra oportunidade de mudança social.

O Leopardo é talvez o romance italiano mais citado na vida política brasileira. Mais que o singelo Pinóquio, fonte de sátiras dos anos 1980.

Para aquilatar a fortuna de O Leopardo entre nós basta lembrar que teve cinco traduções no Brasil: Rui Cabeçadas (Difel, 1963); José Antonio Pinheiro Machado (L&PM, 1983); Marina Colasanti (Record,  2000); Leonardo Codignoto (Nova Cultural, 2003)[2] e Maurício Santana Dias (Companhia das Letras,  2017).

A frase mais conhecida remete ao diálogo entre o Príncipe de Salina e seu sobrinho Tancredi: “se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”.

Ela foi lida como a artimanha da velha aristocracia em se compor com a burguesia ascendente, a fim de impedir uma revolução popular. No entanto, não se tratava de bloqueá-la, mas de dirigi-la, mitigá-la, deformá-la e aparar seus excessos. A frase completa era um chamado à ação.

O romance inicialmente foi visto por intelectuais de esquerda italianos como reacionário. No entanto, passou com o tempo a ser lido como uma crítica do Risorgimento (a unificação italiana feita pelo alto, ou seja, mais pelo novo rei do que por Garibaldi).

Nos 50 anos em que o romance transcorre, houve alterações de monta: “O Leopardo começa com a oração do Rosário e termina com a destruição das relíquias religiosas e profanas da casa Salina”[3]. Além disso, o narrador escreve bem depois, marcando com ironia outros momentos históricos que as personagens desconhecem, e que ele os revela como uma espécie de cumplicidade com o leitor.

Essa modernidade do texto permite quebrar a linearidade narrativa. Assim, quando estamos enlevados pelos desejos romanescos de alguma personagem, o pessimismo do narrador nos antecipa sua velhice e decadência. Os instantes de fuga e paixão são temperados pela corrosão dos anos que se aproximam.

Ora, no Brasil nos acostumamos com um senso comum que nos dita que aqui não há mudanças, apenas a reiteração de uma grande colônia exportadora de commodities.

Nossa independência teria sido um acordo, não houve República e 1930 não teria sido nenhuma revolução.

Justas ou injustas, essas formulações costumam ser debatidas com o ponto de vista da participação das classes subalternas. Afinal, elas lutaram pela independência, abolição, República e por uma revolução em 1930.

O Leopardo registra a crítica dos limites históricos da burguesia italiana por um ângulo oposto: o da nobreza. Dom Fabrizio, o príncipe de Salina, é um aristocrata cético em relação aos seres humanos, cioso de sua tradição familiar e ciente da imobilidade dos costumes da Sicília. No entanto, é perfeitamente dotado de consciência de classe.

A palavra classe aparece várias vezes na obra e o protagonista observa todos os seus interlocutores com consciência do papel desempenhado pelos diversos grupos sociais.

Ele resume a Revolução na gravata do parvenu que passa a frequentar-lhe a casa; observa a filha do burguês a sustentar o garfo pela metade do cabo; mesmo quando ela fala em tom adequado, parece controlada demais.

Até o seu sobrinho Tancredi, vinculado à luta pela unificação italiana, observa na futura noiva burguesa o dedo mínimo apontado para o alto enquanto segura a taça; ou vê a tentativa dela de tirar um fiapo do dente com a unha.

O romance também introduz outras possibilidades de união. A prima de Tancredi, Concetta, será deixada de lado pelo fluxo das coisas, já que ele necessita casar-se com uma burguesa que lhe garantirá os recursos para uma carreira política no novo regime. Mas também por erros de avaliação de uma anedota que só ao final da vida lhe será revelada falsa.

De onde provêm a consciência de classe do príncipe de Salina? Ora, ele é um nobre e pertence a uma classe que tem um pequeno número de membros inter-relacionados e com um vínculo privilegiado com as instituições que simbolizam a sociedade do Antigo Regime como um todo (Rei, corte, parlamento)[4].

A burguesia do século 19 ainda estava desenvolvendo o mercado integrado e um Estado Nacional para adquirir sua consciência além dos interesses corporativos imediatos. Na Itália isso se deu através do que Gramsci chamou de Revolução Passiva, diferentemente do radicalismo jacobino da Revolução Francesa.

Num país semicolonial como o Brasil, cujas tarefas históricas da Revolução Burguesa ficaram para trás, não seria possível um Leopardo.

1) Feltrinelli, Carlo. Feltrinelli – Editor, Aristocrata e Subversivo. São Paulo: Conrad, 2006.

2) Belém, Euler F. “Feliz do país que tem quatro traduções do grande romance O Leopardo, do italiano Tomasi di Lampedusa”, Jornal Opção, N. 2086, Goiânia, sábado 27 junho.

3) Dias, Maurício S. “Posfácio”, in Lampedusa, Giuseppe T. O Leopardo. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 282.

4) Hobsbawm, E. “Notas sobre Consciência de Classe”, in: Mundos do Trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 38.

 

Lincoln Secco é professor de História Contemporânea da USP (Universidade de São Paulo), membro do GMarx USP (Grupo de Estudos de História e Economia Política) e autor de História do PT (Ateliê, 5 edição)


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