Gorbatchev foi responsável pelo fim da União Soviética e avanço da Otan sobre Leste Europeu
03 de setembro de 2022 - 00h01
A herança geoestratégica maldita de Gorbatchev (1931-2022)
Por James Onnig
Entendo que Mikhail Gorbatchev (1931-2022) é um personagem que transcendeu a Glasnost, reforma política, e a Perestroika, a reforma econômica, implementadas entre 1985 e 1991 e que precipitou a debacle da União Soviética.
Nascido em uma vila de uma fazenda coletiva bem perto dos limites do Cáucaso, ingressou no Komsomol, juventude do Partido Comunista, e conquistou uma vaga na prestigiosa Universidade de Moscou se formando em Direito.
Em meados dos anos de 1950 foi transferido para cargos de direção em sua província natal. Lá implementou programas de produtividade agrícola e de certa forma já nutria simpatias por certas iniciativas privadas.
Naquele período se aproximou de lideranças do Comitê Central do Partido (Politburo) recepcionando-os durante as férias na região. Gorbatchev se aproximou do grupo de Yuri Andropov, poderoso chefe da KGB (polícia secreta soviética) entre 1967 e 1982. Foi essa amizade que o conduziu à Secretária-Geral Agrária da URSS no começo dos anos de 1980.
Junto com o economista Abel Agabengyan (1932), outro reformista, apresentaram sugestões para reestruturação da sociedade soviética visando inicialmente recuperar o abastecimento do país que passava por uma crise na indústria de consumo. Com o falecimento de Andropov em 1984 e o curto governo de Chernenko, falecido no começo de 1985, Gorbatchev assume o poder.
A política externa do país estava muito fragilizada. A invasão do Afeganistão, no começo dos anos de 1980, já se mostrava um enorme erro militar, para apoiar um governo comunista no país vizinho. Os altos custos operacionais sugavam os recursos de Moscou contra guerrilhas muçulmanas em parte patrocinadas pelos Estados Unidos.
O descompasso entre o setor militar e o de bens de consumo era um outro flanco vulnerável. Enquanto a indústria armamentista avançava pressionada pela Guerra Fria, a de consumo amargava um atraso marcado pelo desabastecimento que levou a expansão descontrolada de um mercado paralelo.
Em abril de 1986, um grave acidente na Usina de Chernobyl, localizada em Pripiat na Ucrânia ainda soviética, desnudou o sucateamento de boa parte do país.
Nos bastidores da diplomacia existia um outro jogo. Desde o princípio da Guerra Fria, os Estados Unidos monitoravam a economia soviética e sabendo das fragilidades usavam os dados negativos para pressionar o Kremlin a aceitar negociações em especial no setor armamentista.
Em maio de 1972, por exemplo, o Acordo SALT I (Strategic Arms Limitation Talks) congelou por cinco anos a fabricação de plataformas de lançamento de mísseis balísticos intercontinentais entre as duas superpotências. Anos depois, Washington não deu continuidade à ampliação desses acordos em protesto contra a invasão soviética do Afeganistão.
Durante o início da Era Reagan (1981-1989) as pressões contra a URSS cresceram com embargos e ameaças até o começo de 1985. Com a ascensão de Gorbatchev e sua tentativa reformista, o Departamento de Estado estadunidense passou a ampliar a interlocução com a nova liderança soviética.
Convicto de que esse era o caminho, Gorbatchev aceitou uma nova rodada de negociações no campo estratégico-militar acreditando que, ao aliviar o país de certas pressões externas, teria fôlego para implementar as mudanças internas com maior arrojo.
Óbvio que isso não aconteceu. Os erros da administração Gorbatchev custaram muito caro. A URSS chegou a depender cada vez mais de estoques de alimentos fornecidos pelos Estados Unidos e seus aliados capitalistas. A desestruturação da outrora superpotência socialista foi acompanhada de uma escalada de corrupção.
Foi nesse contexto que Washington impôs em 1987 o Tratado INF (Intermediate-Range Nuclear Forces). Ambas as nações se comprometiam a desativar e destruir mísseis de alcance médio e intermediário que poderiam ser lançadas de silos (bases subterrâneas) com alcance entre 500 (quinhentos) e 5.500 (cinco mil e quinhentos) quilômetros.
Entre 1987 e 1989 a comissão binacional monitorou esse desmanche. As forças dos Estados Unidos eliminaram cerca de mil armas enquanto os soviéticos eliminaram quase mil e novecentas armas.O número era discrepante entre os dois lados uma vez que os soviéticos tinham sim muito mais armas.
A comunidade internacional por sua vez, fortemente influenciada pelos Estados Unidos, só olhava para a crise soviética que se transplantava para todo o leste europeu aliado de Moscou, o antigo Pacto de Varsóvia. Já as mazelas e desgraças produzidas pelo capitalismo monopolista e excludente eram encobertas e manipuladas por governos e grandes corporações da mídia. De maneira geral foi essa assimetria que produziu o mundo em que vivemos hoje.
A destruição dessas armas não afastou o perigo de uma guerra nuclear. Outras classes de artefatos de destruição em massa lançados de aviões, navios e submarinos continuaram ameaçando a humanidade.
Tudo leva a crer que a pressão de Washington pela assinatura do INF Treaty (1987) tinha um objetivo geoestratégico claro: se não totalmente, pelo menos parcialmente o território europeu estaria fora do raio de ação dos mísseis soviéticos de alcance intermediário. Curiosamente Lisboa, uma das capitais europeias mais distantes de Moscou (tomada aqui como mero referencial), fica a 4.600 km (quatro mil e seiscentos quilômetros) aproximadamente.
Em poucos anos a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) aproveitou essa “vantagem” mesmo que parcial e iniciou sua expansão. Em 1990, na fase aguda da crise soviética, a aliança militar capitalista arrancou um novo tratado para a limitação e redução de forças armadas convencionais na Europa. Entre 1991, fim da URSS e do socialismo no Leste Europeu, e 1994, a Otan criou seu programa de Parcerias para a Paz, assinando acordos de cooperação técnica e política com os países da antiga URSS e do finado Pacto de Varsóvia avançando assim pela antiga área de influência russa.
Em 2019, Donald Trump se negou a renovar outros acordos militares acusando o governo Putin de não honrar os já assinados.
Não seria exagero afirmar que foi o reformismo de Gorbatchev e seus erros estratégicos que encorajaram a Otan a gradualmente iniciar um cerco à Rússia. A aliança militar capitalista se lançou a propor que a Ucrânia também aderisse ao bloco. O resto é a história que estamos assistindo desde fevereiro de 2022.
James Onnig é professor de Geopolítica da Facamp (Faculdades de Campinas)