Drones turcos usados por ucranianos contra pró-russos em Donetsk podem ter desencadeado guerra
06 de abril de 2022 - 14h41
A Turquia e sua geopolítica no contexto da Guerra Russo-Ucraniana
Por James Onnig
O presidente turco Recep Tayyip Erdogan foi mais uma vez o anfitrião e se colocou de certa forma como conciliador para o conflito entre Ucrânia e Rússia no último mês de março.
Essa postura não tem nada de aleatória. É sim carregada de muita geopolítica. O Estado turco vem desenvolvendo uma política externa para se afirmar como potência regional com amplitude expansionista.
Um exemplo dessa intencionalidade são as relações com a Ucrânia. Em 1 de dezembro de 1991 um referendo popular confirmou a independência da Ucrânia pós União Soviética.
A Turquia, governada então por Turgut Ozal (1989-1993), atenta às questões geoestratégicas do Mar Negro, rapidamente reconheceu o novo governo ucraniano.
Tratava-se de um membro da Otan, no caso a Turquia, se apresentando prontamente como parceiro amistoso de um país da ex-União Soviética e que na época o senso comum apontava como área de influência russa.
De lá para cá, as relações comerciais turco-ucranianas cresceram e se aprofundaram. Exemplo disso foi a recente visita do atual presidente turco Recep Tayyip Erdogan a Kiev, no início de fevereiro deste ano.
Lá foram assinados acordos que vão do comércio bilateral ao incremento do intercâmbio tecnológico Ancara-Kiev no setor armamentista, especialmente dos drones.
Não foi à toa que Putin colocou seu poderio militar em alerta, incluso forças de dissuasão nucleares, semanas atrás.
Além de todas as questões geopolíticas envolvidas, os russos entendem que os ucranianos estão tentando desenvolver armas cada vez mais letais e sofisticadas e que a fabricação de drones com apoio turco é um dos estágios para isso.
Nessa história de nossos dias uma recapitulação é importante. Em 2014, quando a Rússia retomou pela força a Crimeia, a diplomacia turca querendo marcar posição reagiu com declarações duras, reiterando que defendia a integridade territorial da Ucrânia e colocando no pacote de declarações o tema da Geórgia.
A república do Cáucaso, vizinha da Turquia, às margens do Mar Negro, enfrentou uma guerra contra a Rússia em 2008 levando à separação da Ossétia do Sul e Abkhazia, em um contexto muito semelhante a Donetsk e Lugansk na Ucrânia.
Hoje, a Geórgia tem o status de parceria especial com a Otan se afastando de vez da influência de Moscou.
É aí que a complexidade do xadrez geopolítico emerge. Além de rivalidades históricas e regionais, a Turquia tem relações notadamente pragmáticas com a Rússia inclusive em áreas estratégicas e comerciais.
Foi por causa delas que Erdogan expressou desculpas formais a Putin em 2016 pela derrubada de um caça russo Sukhoi SU-24 em 2015, no congestionado e militarizado espaço aéreo da Síria. Erdogan não tinha e não tem como falar grosso o tempo todo.
Um exemplo é o tema do gás russo. Fundamental para a economia turca, tem gerado grandes projetos de infraestrutura que transformam o território em um ponto de passagem estratégico para esse recurso chegar a Europa.
É o caso Blue Stream, gasoduto do Mar Negro, que desde 2005 é controlado pela russa Gazprom e a turca Botas Petroleum.
Em 2010, um acordo Moscou-Ancara viabilizou a construção do Complexo Nuclear de Akkuyu pela empresa russa Rosatom e a construtora turca Ozdogu. O negócio gira na casa dos 30 bilhões de dólares.
Em 2017, no embalo da reaproximação, a Turquia fez encomendas do S-400, poderoso sistema antiaéreo russo, gerando enormes desconfianças entre seus parceiros da Otan.
Em 2020, Putin e Erdogan deram início a escala comercial do gasoduto TurkStream (antigo South Stream paralisado em 2015 após a derrubada do Sukhoi SU 24) que vai levar gás de Krasnodar na Rússia até Kiyikoy na Turquia visando o mercado do sudeste europeu.
O problema mais recente envolve os drones turcos Bayraktar TB2. Eles foram usados no fim de 2021 pelos ucranianos para atacar posições pró-russas em Donetsk.
Não são poucos os analistas militares que afirmam que esse ataque foi um dos fatores que desencadearam ou aceleraram a invasão da Ucrânia.
Moscou ponderou que se os ucranianos desenvolverem armas do porte e letalidade do drone turco a coisa se complica para as forças russas.
Lembremos que essa arma foi usada e mais uma vez testada pelo Azerbaijão, aliado dos turcos contra os armênios em Nagorno–Karabakh em setembro de 2020.
Exigir que a Ucrânia não faça parte da Otan é só o começo de uma série de demandas para impedir que Kiev seja detentora de armas que coloquem em risco a segurança russa.
Nesse jogo, a Turquia, uma parceira inconstante, pode ser pressionada a não vender armas ou tecnologia aos ucranianos.
Fica uma pergunta no ar: a Turquia, territorialmente entre dois “mundos”, vai poder ter “duas geopolíticas”?
De um lado, apresentar-se nesta atual conjuntura como conciliadora para o Ocidente e de outro, continuar belicista e expansionista apoiando guerras e ocupações como no caso do apoio aos azerbaijanos no ataque à população armênia de Nagorno-Karabakh e no suporte aos separatistas de origem turca na não reconhecida República Turca do Norte do Chipre?
Os interesses turcos são, sim, potencialmente desestabilizadores no Cáucaso e na Ásia Central. Erdogan já deu mostras de sua intenção ao incentivar o fortalecimento e ampliação do Conselho de Cooperação dos países de língua turca, formado pelo Azerbaijão, Cazaquistão, Quirguistão e Tadjiquistão, além do Turcomenistão como observador, região onde a influência russa parecia inequívoca.
James Onnig é professor de Geopolítica da Facamp (Faculdades de Campinas)