Guerra na Ucrânia pode fazer com que Rússia seja decisiva para Irã se tornar potência nuclear
23 de maio de 2022 - 11h57
A guerra da Ucrânia no caminho do Irã
Por Renatho Costa
O Irã vive sob um dilema e não tem muito tempo para tomar uma decisão. Desde 2018, quando Donald Trump retirou os Estados Unidos do Acordo Nuclear Iraniano – JCPOA (Joint Comprehensive Plan of Action) – e as sanções foram reimpostas ao Irã, o país passou a ter muito menos margem de manobra em sua política econômica.
Logo no segundo semestre de 2019, o aumento do preço da gasolina, entre 50% e 300%, levou a população às ruas e não se tratava apenas de sua parcela mais progressista, como ocorria em momentos anteriores, as camadas sociais mais pobres foram afetadas de tal forma, que estavam protestando ao lado daqueles que tradicionalmente gritavam contra a Revolução.
Não obstante à forte repressão aos protestos, que de múltiplas maneiras eram estimulados por países ocidentais que visavam fragilizar o governo iraniano e, quiçá derrubar os clérigos do poder, a pandemia, que se estabeleceu em 2020, fez com que o Irã ficasse ainda mais fragilizado.
Além de ter sido um dos primeiros países a sofrer com os efeitos pandêmicos, o posicionamento das grandes lideranças ocidentais de manter as sanções, mesmo diante da morte de inúmeros iranianos, demonstrou que a perspectiva estadocêntrica impor-se-ia aos valores humanitários.
A superação da pandemia, pelo Irã, contou com o forte apoio da China e da Rússia, essa última, fornecendo a vacina Sputnik-V.
A relação entre esses três países têm sido a chave para a sobrevivência econômica do Irã, mas a guerra entre Rússia e Ucrânia pode afetar de modo inesperado essa dinâmica.
Ainda que o governo iraniano se posicione contrário à guerra, não a condena, tendo em vista justificar que a maneira com que a Otan estabelece sua estratégia, coloca em risco a soberania do Estado russo.
Nesse sentido, como a Rússia passou a sofrer com as sanções econômicas, cada vez mais se torna um agente sem compromissos com o restante do sistema internacional.
Exatamente nesse sentido que a aproximação entre russos e iranianos pode chegar a um novo estágio. As negociações que visavam retomar o acordo nuclear de 2015, em abril último, foram suspensas em Viena.
Os Estados Unidos não aceitaram as condições impostas pelos iranianos para sua retomada. Como saída momentânea, decidiu-se suspender a processo negocial.
Frente a esse novo momento, o Irã se vê “livre” para dedicar-se ao seu programa nuclear, o que poderá levá-lo à mudança de status quo, caso venha a alcançar êxito, mas por outro lado, o investimento massivo no programa faz com que outros setores sejam negligenciados, gerando o empobrecimento ainda maior da população e ampliando o questionamento do cidadão comum sobre as vantagens de o Irã ser uma potência nuclear, se há iranianos morrendo de fome no país.
A classe dos clérigos que era respeitada – ou tolerada – desde que a Revolução se instalou no país em 1979, agora passa a sentir os efeitos da recessão. Tradicionalmente, os xeques já não eram bem-vistos na capital, Teerã, e evitavam usar suas vestimentas religiosas na cidade, mas Qom, que é a “capital do xiismo”, os clérigos usavam suas vestimentas com muito orgulho.
Mas agora, também estão deixando de usá-las por serem vistos pela população como beneficiários de um sistema que lhes concede vantagens distintas dos demais cidadãos, como moradia gratuita, salário, trabalho etc.
Num cenário de recessão, esses privilégios são inaceitáveis e os moradores de Qom também passaram a atacar os xeques.
Mas a situação da economia iraniana é tão grave que até esses benefícios que os xeques tinham, hoje estão sendo retirados. Muitos foram demitidos de escolas, universidades e atividades governamentais.
Os imóveis destinados aos clérigos gratuitamente, em Shahrak Pardisan, logo poderão passar a ser alugados ou vendidos. Muitos xeques decidiram tirar suas vestes religiosas e trabalhar como motoristas de táxi informais. E foram ainda mais afetados pelo aumento da gasolina.
Sem perspectiva de retirada das sanções e com o país em grave recessão, o Irã precisa decidir se aceitará abandonar o programa nuclear para salvar sua economia, o que não seria nada viável para a soberania do país, e o caso da Ucrânia deixa muito claro. A outra opção seria acelerar o programa nuclear, mesmo colocando em risco a estabilidade interna do país.
Para essa segunda opção, a exclusão da Rússia pelos países ocidentais pode ser providencial ao Irã. Ainda que a relação Irã-Rússia seja altamente pragmática, se os russos quiserem auxiliar os iranianos no programa nuclear, rapidamente o Irã tornar-se-á a mais nova potência nuclear do sistema internacional.
Certamente as regras do jogo no Oriente Médio mudariam drasticamente, mas será que a população iraniana conseguirá suportar por muito mais tempo essa recessão? As possibilidades estão todas à mesa e o resultado da guerra na Ucrânia poderá significar a transformação geopolítica do Oriente Médio.
Renatho Costa é doutor em História Social pela USP (Universidade de São Paulo), professor-pesquisador na Al-Mustafa Internacional University (Qom, Irã), professor de Relações Internacionais da Unipampa (Universidade Federal do Pampa) e coordenador do Grupo de Análises Estratégicas – Oriente Médio e África Muçulmana (GAE-OMAM), autor do livro Os Aiatolás e o Receio da República Islâmica do Irã (Porto de Ideias, 2017), coautor de República Islâmica do Irã, 40 anos: de Khomeini a Soleimani (Autografia, 2020) e coautor de Sem Caminhos para Gaza: uma crônica de aventura e fraude sob o bloqueio egípcio (Memo Editora, 2021).