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GEOPOLÍTICA

Guerra na Ucrânia pode esvaziar G-20 e fortalecer Brics, mas Brasil corre risco de ser alijado do bloco

Bandeira dos cinco países que compõem os Brics

30 de abril de 2022 - 12h30

Reconfigurações do poder global, o Brasil e os Brics

 

Por Daniel Barreiros

A resposta russa às múltiplas linhas de tensão com a Otan, e que resultou no corrente conflito com a Ucrânia, tem sido considerada por alguns analistas ocidentais como o dobre de finados pelas iniciativas multilaterais entre Moscou e as potências ocidentais.

Isso porque, acredita-se, a proximidade com o governo russo tornou-se tóxica para a legitimidade de quaisquer arranjos que precisem necessariamente contemplar os interesses estratégicos do governo Putin.

É por esse motivo que vem sendo aventada a possibilidade de um esvaziamento do G-20, fórum de relevância discutível, que foi fundado em 1999 como uma tentativa de criar uma linha de comunicação entre os senhores do sistema-mundo capitalista – as economias do G-7 – e os chamados “mercados emergentes”.

A presença de representantes russos nas reuniões do fórum vem sendo vista como uma possibilidade indesejável pelos Estados Unidos.

Enquanto medidas formais de alijamento da Rússia do G-20 não acontecem, torna-se provável o boicote norte-americano à reunião de cúpula anual deste ano, a ser realizada em Jacarta, Indonésia.

Tal fato pode eventualmente resultar no cancelamento do encontro, ou, numa hipótese mais plausível, na sua transformação em um evento meramente protocolar.

Assim, parece inequívoco que o conflito entre Rússia e Ucrânia tenha criado uma forte interferência nos protocolos de comunicação diplomática e multilateral entre o núcleo do sistema-mundo capitalista – liderado pela economia-nacional norte-americana, e representada pelo governo de Washington – e as duas potências revisionistas mais importantes do corrente jogo geopolítico e geoeconômico – a Rússia, diretamente envolvida, e a China, por tabela.

O enfraquecimento das correias de transmissão de pressão diplomática sobre governos que voluntariamente se propõem a desafiar a ordem global multiplicará as linhas de choque em termos de hard power – o que cria uma perspectiva preocupante – e criará o ecossistema ideal para a aproximação ainda maior entre essas economias-nacionais revisionistas. Já vemos ambas as perspectivas emergirem; se irão vingar, só o tempo dirá.

O Brasil perdeu, há tempos, o impulso de rever sua posição enquanto economia nacional no sistema-mundo.

Desde pelo menos 2016, as iniciativas de inserção internacional nos mercados latino-americanos e da África ocidental foram esvaziadas, os setores de engenharia e de energia devastados, os investimentos em ciência e tecnologia sucateados, a estratégica de defesa nacional tornada uma comédia pastelão, com a eleição recente da França como “desafio geopolítico” à soberania brasileira na Amazônia.

Em suma, têm-se justificado retirar o “B” dos Brics, porque, no mínimo, os últimos seis anos periferizaram a economia e a sociedade brasileira, com seus garimpeiros e agroboys, a um ponto que nos faz lembrar os anos 90.

Mas a geopolítica passa por uma virada inequívoca, e ao bom estrategista (se tivermos um, em breve) isso não deve passar em branco. Com a interferência na comunicação entre o G-7 e as duas maiores potências revisionistas do sistema, é hora de os Brics ganharem maior relevância, e isso deve nos interessar diretamente.

Creio que algumas linhas de convergência entre o Brasil e outros membros dos Brics serão da maior importância no futuro próximo, caso tivermos em Brasília um governo realmente comprometido com o desenvolvimento nacional e com a redução da subserviência brasileira ao núcleo do sistema-mundo capitalista.

A integração financeira é certamente o primeiro tópico. Seria da maior importância o desenvolvimento de uma arquitetura institucional que permitisse realizar transações em mercados-chave (petróleo, minérios, alimentos) através moedas nacionais dos integrantes do bloco, evitando assim o uso do dólar.

É evidente que, da parte do Brasil, tal iniciativa deveria ter como objetivo a intensificação do comércio externo com todos os integrantes dos Brics, mas buscando-se ao mesmo tempo não cristalizar a dita “vocação agroexportadora” brasileira, que pode ser facilmente reproduzida (como de algum modo vem sendo na relação coma China).

Num futuro bem-sucedido, a própria denominação das transações poderia prescindir do dólar como unidade de conta, e não apenas como meio de pagamento.

A segunda área de cooperação estaria no setor espacial. A maior parte dos países dos Brics conta com programas espaciais mais ou menos bem-sucedidos, com particular destaque para a China e a Rússia. A Índia conta com uma razoável capacidade de lançamento de veículos. O Brasil, por sua vez, tem – como sabemos, um programa espacial sucateado, mas know-how acumulado.

A cooperação espacial no âmbito dos Brics poderia, se conduzida de forma resoluta, reverter a vergonhosa situação que envolve a Base Aeroespacial de Alcântara e o acordo com os Estados Unidos; a base, no Maranhão, é um ponto planetariamente privilegiado para o lançamento de foguetes, e vem sendo tratada a partir de um enfoque “comercial” e não estratégico, como se fosse um terreno baldio para o qual se busca um arrendatário.

A terceira área de cooperação é a militar. Brasil, Rússia e China dispõem de indústrias bélicas bem colocadas e diversificadas, e com fortíssimo potencial comercial. Os cinco membros dos BRICS são países detentores de tecnologia de construção de aeronaves militares – com a África do Sul construindo modelos sob licença através da Atlas Aircraft Corporation, e os demais dispondo de capacidade não só de construção, mas de projetar equipamentos.

Através da Rosoboronexport, a Rússia ocupa cerca de um quarto do mercado mundial de armas. Acordos de transferência tecnológica e joint ventures na produção de equipamentos para operação em todas as forças armadas dos países membros seria uma fronteira de cooperação com forte impacto global.

Em suma, o campo está aberto para um posicionamento efetivamente anti-hegemônico dos membros dos Brics, o que requereria antes tudo, uma decidida vontade de aplainar arestas e buscar uma estratégia global comum entre os membros do bloco.

 

Daniel Barreiros é doutor em História pela UFF (Universidade Federal Fluminense), professor do programa de pós-graduação em História Comparada da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), alumni do Study of the United States Institutes for Scholars (U.S. Foreign Policy, University of Delaware), e vice-presidente da International Big History Association.


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