Guerra na Ucrânia não começou com invasão russa, mas com expansão da Otan, diz professor de universidade da Pensilvânia
25 de março de 2022 - 14h51
A Guerra na Ucrânia: dois pesos e duas medidas?
Por Lowell Gustafson
É o presidente russo Vladimir Putin um criminoso de guerra, com queixas legítimas que, se consideradas previamente pela Otan e pelos Estados Unidos, teriam evitado a atual catástrofe ucraniana?
Depois de concentrar forças militares ao longo das fronteiras da Ucrânia por meses, a Rússia finalmente invadiu a Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022. Esperando uma vitória rápida, as forças russas ficaram surpresas com a eficácia da resistência ucraniana.
Suprimentos, logística, coordenação de forças militares e equipamentos militares problemáticos, bem como expectativas irreais sobre o povo e a liderança ucranianos, tudo isso tem impedido a Rússia de capturar a capital e substituir o presidente Zelensky por um fantoche pró-russo.
Diante disso, a Rússia começou a atacar cada vez mais alvos civis, como fizeram na Chechênia e na Síria. O objetivo é levar a Ucrânia à submissão, sem levar em conta as leis de guerra que protegem os civis.
Mas, como as baixas civis na Guerra da Ucrânia deveriam ser comparadas com aquelas causadas em nossa “guerra de escolha” no Iraque?
Como deveriam ser comparadas aos bombardeios incendiários de 67 cidades japonesas na Segunda Guerra Mundial?
Como podemos compará-las com a destruição atômica de duas cidades japonesas?
Como a agressão imperial contra a Ucrânia deveria ser comparada à Guerra Mexicano-Americana, à Guerra Hispano-Americana, à guerra contra os nativos americanos e à “diplomacia” do dólar, ao corolário Roosevelt, à Doutrina Monroe?
A Guerra na Ucrânia vem sendo caracterizada por muitos, como um conflito entre democracia e autoritarismo, entre a defesa da autodeterminação nacional e a agressão imperial, entre o direito internacional e os crimes de guerra.
A determinação ucraniana, inclusive de muitos falantes do russo, em defender sua pátria, vem sendo contrastada com recrutas russos mal motivados e indispostos a uma guerra contra um país vizinho.
O resultado é o pior conflito na Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial, com milhões de refugiados ucranianos fugindo para a Polônia e outros países da Otan.
Embora tudo isso pareça verdadeiro o suficiente para muitos, continua sendo apenas parte de um quadro mais completo.
A história não começa com a invasão russa em 24 de fevereiro. Começa com a história da Otan.
No final da Segunda Guerra Mundial, as forças de Stalin marcharam pela Europa Oriental, libertando terras anteriormente controladas pelas forças de Hitler e, em seguida, impondo o controle soviético sobre elas.
Stalin tinha mais soldados em suas Forças Armadas convencionais que os aliados, e a proximidade geográfica tornou mais fácil para que os mantivesse posicionados nesses territórios.
Alemanha, França, Itália, Grã-Bretanha e outras nações europeias, haviam sido devastadas demais pela guerra para reunir as forças necessárias para combater Stalin.
E assim a Otan foi formada em 1949 para, como disse um gaiato, manter os russos fora, os americanos dentro e os alemães sob controle.
Depois de quatro décadas de Guerra Fria, o Muro de Berlim caiu em 1989 e o Império Soviético se desintegrou em 1991.
Muitos nos Estados Unidos exaltavam um mundo pós-Guerra Fria, no qual era a última superpotência remanescente em um mundo unipolar.
Muitos duvidavam de que ainda houvesse uma ameaça real de expansão russa. A ideia, depois de 1991, de tanques russos atravessando a Passagem de Fulda e avançando para Paris parecia absurda.
O aumento do comércio e os investimentos na Rússia, pareciam para muitos uma estratégia muito mais produtiva, que cercar o país com alianças hostis.
Apesar disso, a Otan não foi dissolvida. Ela continuou adicionando a si membros que, outrora, haviam feito parte da aliança de segurança soviética, o Pacto de Varsóvia.
Em 1999, a República Checa, a Hungria e a Polônia aderiram à Otan; Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia e Eslováquia em 2004; Albânia em 2009.
Tanto a Geórgia como a Ucrânia manifestaram interesse em aderir à Otan. Depois de décadas de dominação de Moscou, esses países tinham motivos para temer.
Mas poderiam os Estados Unidos e os membros originais da Otan temer a expansão russa?
O presidente Putin e outros líderes russos expressaram regularmente oposição à expansão da Otan e se sentiram ameaçados por ela.
O propósito da Otan era agora dar uma “volta olímpica” após a Guerra Fria e humilhar uma Rússia enfraquecida, enquanto esperava que os Estados permanecessem para sempre como hegemon global?
Ninguém nos Estados Unidos parecia se perguntar qual seria a nossa resposta caso a Rússia tivesse organizado uma aliança de países da América Central ao Cone Sul, e falasse ainda em adicionar o México a ela.
Nossa resposta alarmada diante do relacionamento soviético com Cuba, do apoio russo à Venezuela durante os governos de Chávez e Maduro e, das recentes preocupações sobre o aumento das relações latino-americanas com a China, parecem perfeitamente defensáveis do nosso ponto de vista.
Houve alguns que, à época, argumentaram contra a expansão da Otan, mas pessoas como Ted Galen Carpenter, John Mearsheimer e outros foram ignorados pelos formuladores de política.
Seus avisos de que a expansão acabaria causando uma reação da Rússia, finalmente se tornaram reais.
Mas nós, membros da Otan, não assumimos a responsabilidade por isso; em vez disso, apenas culpamos Putin por querer tornar a Rússia grande novamente e restaurar o império russo. Ele é o agressor e criminoso de guerra.
Ele está tirando vantagem do que entende por um declínio dos Estados Unidos, na esteira de nossa derrota para o Talibã no Afeganistão, da divisão doméstica, do aumento da dívida pública fora de controle, dos enormes déficits comerciais e de outras fraquezas percebidas.
A maioria nos Estados Unidos pensa que Putin interpretou mal o que é fraqueza e o que é força. Nós gastamos 10 vezes mais em nossas Forças Armadas do que a Rússia.
Este ano gastaremos US$ 778 bilhões em nossas Forças Armadas; a Rússia, pouco menos de US$ 68 bilhões.
E apesar de toda a conversa sobre a Rússia ter trabalhado na modernização de suas Forças Armadas, seu fraco desempenho na Guerra da Ucrânia sugeriria que até mesmo o dinheiro não foi bem gasto.
Estamos canalizando quantidades significativas de ajuda humanitária e militar para a Ucrânia, embora menos do que o presidente Zelensky deseja.
A esperança é que a Ucrânia possa atolar a Rússia em um impasse, sem levar a uma escalada e a uma guerra direta entre os Estados Unidos e a Rússia.
Talvez isso leve a Rússia à falência e leve à derrubada de Putin. A maioria pensa que os poucos bilhões que estamos dando à Ucrânia são uma gota em meio a todo nosso orçamento de defesa, e que podemos obter um grande retorno com isso.
De sua parte, Putin vê os Estados Unidos tentando, desde Obama, pivotar em direção à Ásia, mais por temer a ascensão da China e sua ambição de tomar o controle de Taiwan.
Vemos também aí o desenrolar de outra história, com o estabelecimento em 1949 de um governo em Taiwan por Chiang Kai-shek, cujas forças haviam sido derrotadas pelos comunistas chineses.
Novamente, os americanos não pensam muito sobre como seria se estivessem no lugar dos chineses.
E se o general confederado Robert E. Lee não tivesse se rendido ao general da União Ulysses S. Grant, em Appomattox no final da Guerra Civil, mas tivesse fugido com seu exército para o Havaí, onde seus descendentes ainda governariam.
Não haveria pressão nos Estados Unidos para acabar com a guerra civil, invadir o Havaí e estabelecer o controle dos Estados Unidos sobre as ilhas?
O modo como os chineses têm respondido à Guerra na Ucrânia recebe grande atenção nos Estados Unidos.
Muitos nos Estados Unidos se preocupam com o que a China tem aprendido com o conflito em termos de seu papel numa ordem mundial multipolar, ao passo que o país se fortalece.
Tanto Putin quanto o presidente chinês Xi Jinping são refratários à ordem mundial imposta pelos Estados Unidos e desafiam a sua continuação.
Estamos vendo o fim da ordem mundial liberal pós-Segunda Guerra Mundial, liderada pelos Estados Unidos, e a necessidade de todas as grandes potências aprenderem a navegar em um mundo multipolar global?
Os europeus trabalharam para manter um Concerto da Europa ou Equilíbrio de Poder relativamente harmonioso no século 19. Isso durou um século entre as Guerras Napoleônicas e a Primeira Guerra Mundial.
Um sistema multipolar ainda mais complicado em nível global pode evitar uma Terceira Guerra Mundial e também resolver problemas globais como as mudanças climáticas?
A resposta a essa pergunta será influenciada pela forma como os Estados Unidos se ajustam às mudanças nessas condições.
Podemos prestar atenção em como nossos adversários vêem o mundo? Podemos vê-los como seres humanos totalmente complexos e não caricaturas?
Podemos evitar ver a nós mesmos como representantes irrepreensíveis do Bem e os outros como o Mal?
Podemos respeitar o que os outros entendem como necessário para sua segurança nacional? Podemos juntos considerar o que é necessário para a segurança global ou humana?
Ou vamos apenas trabalhar para esfolar o nariz de Putin contra o chão?
Lowell Gustafson é professor do Departamento de Ciência Política no College of Liberal Arts and Sciences da Universidade de Villanova, Pensilvânia, Estados Unidos.
Tradução: Daniel Barreiros, doutor em História pela UFF (Universidade Federal Fluminense), professor do programa de pós-graduação em História Comparada da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), alumni do Study of the United States Institutes for Scholars (U.S. Foreign Policy, University of Delaware), e vice-presidente da International Big History Association.