Guerra na Ucrânia faz russos retomarem estilo de vida soviético, mas nos marcos do capitalismo
24 de março de 2022 - 16h58
A vida como ela é
Por Gezilda Lima, de Moscou
Há exatamente um mês, os russos começaram a entender que haverá muitas mudanças na vida por aqui. Pensar no retorno ao período soviético não é exatamente um novo projeto russo. Mas, de algum modo, muita coisa voltará a ser como era naquela época.
Evidentemente, não está colocada na ordem do dia uma Perestroika, que nos faça sonhar com um retorno ao socialismo. Mas, sem dúvida alguma, essa nova Perestroika nos trará de volta a ideia de viver sem marcas famosas, europeias ou americanas.
Talvez isso traga algum desconforto à geração dos últimos 30 anos, que não viveu o socialismo, e que cresceu à luz da ilusão capitalista, sob a falsa retórica de liberdades plenas.
O que essa geração não consegue responder, é como dar conta dessas liberdades, quando a ela não está dada as condições financeiras para sobreviver nesse mundo, onde não existe a garantia de moradia, educação pública e gratuita, assistência médica plena e gratuita, e outras benesses do socialismo.
Sim, isso lhes falta desde que nasceram. Mas, assim nasceram, diferentemente de seus pais e avós.
Com a eclosão do conflito e a implementação de um sem-número de sanções contra a Rússia, vivemos hoje uma Nova Era.
Gostemos ou não, a partir de agora, devemos nos ater somente ao que é possível produzir aqui, tendo no máximo, a possibilidade de acesso a produtos de países amigos, infelizmente poucos.
A equipe econômica e administrativa do governo russo tem trabalhado arduamente na reorganização da economia e do parque produtivo. Trata-se da volta à antiga economia planificada, agora, nos moldes capitalistas.
É claro que a indefinição do fim do conflito, aliada a um sentimento já conhecido do povo russo, de escassez, tem levado a população à tentativa de se precaver e buscar provimentos para longo prazo.
Mas, por outro lado, o governo busca conter essa corrida, tranquilizando e criando instrumentos de contenção à especulação.
Exemplo disso, foi a corrida às lojas de marcas estrangeiras que, logo na primeira semana após as sanções, anunciaram a saída do mercado russo.
Outro setor que chama a atenção é o mercado de medicamentos, pois o russo se acostumou a medicar-se com remédios geralmente vindos da Europa.
Evidentemente, aqueles que não sumiram das prateleiras, tiveram seus preços reajustados de forma exorbitante, mesmo o governo tendo garantido que não haverá qualquer problema na fabricação de análogos aqui.
O governo faz marcação cerrada aos distribuidores desses medicamentos com aplicação de multas, exigência de retorno ao preço inicial e até o fechamento de farmácias infratoras.
Nos supermercados, prateleiras de produtos alimentícios e de higiene pessoal importados, foram literalmente substituídas por produtos nacionais.
Em geral não há um frenesi que modifique a rotina e o povo começa a assumir uma postura de esperar, até que essa Nova Ordem se acomode no mercado nacional.
As empresas nacionais estão se reorganizando para suprir as necessidades de componentes importados e, de um modo geral, têm anunciado que aquilo em que hoje não há similares na Rússia, serão adquiridos de países vizinhos e parceiros como China, Índia, Turquia e outros.
No setor financeiro, ainda se sente o bloqueio ao sistema Swift de pagamentos, remessas e recebimentos via dólar, mas a resposta de Putin é taxativa: “cumpriremos todos os nossos compromissos e não nos furtaremos de fornecer nossos produtos, em especial, gás e petróleo, aos países que decidiram nos isolar impedindo-nos do uso do dólar; então por conta das sanções, nossos negócios somente serão realizados a partir do nosso rublo”.
Imediatamente após esse pronunciamento, houve uma queda do dólar e o fortalecimento do rublo na Bolsa de Valores.
Para o russo comum, isso pouco influencia. Talvez no verão, quando as famílias se preparam para as férias, essas mudanças poderão ser sentidas, porque para os russos, verão é sinônimo de viagens em busca do mar.
Já para a oligarquia, a distância das “verdinhas” poderá ser mais sentida. Um exemplo disso é a recente demissão, por vontade própria, do oligarca Anatoly Tchubais, que nos últimos dois anos ocupava uma cadeira de assessor especial da administração do presidente Putin, para assuntos de negócios com o exterior.
Tchubais foi o mentor e diretor do Instituto Skolkovo, sediado em Moscou, para formar doutores em nanotecnologia.
Mas o que esse Instituto conseguiu fazer foi arrancar dos cofres públicos 90%, para cobrir o déficit de seu orçamento.
A ineficiência de resultados levou Tchubais a ser substituído desse cargo, já em dezembro de 2020.
E o que tenho visto por aqui, do povo russo, é que estão aplaudindo de pé sua recente exoneração do governo, pois só assim se colocará um fim em sua mamata.
Enquanto a vida segue na busca de um novo modelo circunscrito ao território russo, assistimos a manifestações populares na Europa e nos Estados Unidos, contra o aumento da inflação e do custo de vida, provocados pelas próprias sanções aplicadas por seus governos contra a Rússia.
Parece que europeus e americanos deram um tiro em seus próprios pés.
Gezilda Lima é jornalista, diretora de cinema, mora na Rússia desde o ano 2000 e correspondente do Holofote