Guerra na Ucrânia coloca capitalismo ocidental em xeque ao aproximar Rússia da China
05 de abril de 2022 - 14h53
O capitalismo ocidental em xeque
Por Caio Bugiatto
A guerra na Ucrânia sinaliza uma mudança de eixo da economia política mundial para a Ásia. Na história do capitalismo transformações profundas acontecem no sistema internacional com processos políticos hecatômbicos.
Diante da reação militar do governo Putin na Ucrânia ao expansionismo da Otan, os Estados capitalistas ocidentais intensificaram pressões contra o Estado, a sociedade e a economia da Rússia.
Sanções econômicas procuram atingir indivíduos, empresas e agentes e instituições estatais em diversos setores, de modo a impedir que os russos viabilizem as operações militares.
No setor bancário, os capitalistas ocidentais removeram bancos russos do sistema Swift, uma plataforma financeira internacional que realiza pagamentos interbancários.
No de transporte, o fechamento do espaço aéreo e abandono de operações de empresas estrangeiras em território russo foram algumas das medidas.
No de petróleo e gás, grandes petroleiras ocidentais encerraram investimentos e atividades no país.
Na dimensão político-diplomática, a Assembleia Geral da ONU, em sessão extraordinária, aprovou resolução condenando o Estado russo. O documento obteve o voto favorável de 141 países, 35 abstenções, 12 ausências e cinco votos contrários.
Na dimensão político-ideológica, com o objetivo de demonizar o governo Putin (e seus aliados), a máquina ocidental de propaganda de guerra cotidianamente reafirma o conflito do bem contra o mal, a heroica resistência dos ucranianos (cujas células são em boa parte compostas por neonazistas), os crimes de guerra e o suposto atoleiro em que as Forças Armadas russas teriam se metido no pântano da resistência local.
Vejamos mais de perto estas situações.
O índice de aprovação do governo russo e o apoio popular à ação das Forças Armadas subiram no país.
Aparentemente o governo Putin sabe trabalhar habilmente com fatos históricos, como as invasões napoleônica e nazista (esta que contou com as vistas grossas de Washington), assim como com a nazificação da Ucrânia e a expansão da Otan. O enaltecimento do feriado nacional da Grande Guerra Patriótica, que representa a vitória sobre a Alemanha nazista, também é emblemático.
Na ONU, os Estados que não votaram a favor da resolução do Ocidente representam cerca de 4,1 bilhões de habitantes, dentre os quais China e Índia.
A maioria dos países que não votaram contra os russos, ficam na África e na Ásia e têm relações econômicas e políticas amistosas com a Rússia.
Vale lembrar que os soviéticos auxiliaram na descolonização do continente africano, para o qual a Rússia é grande fornecedora de grãos e milho.
O Estado e a economia da Rússia não são dependentes e subordinados às potências capitalistas ocidentais, como é o caso do Brasil e da América Latina.
Ademais, sua projeção econômica e política (capitalista) é mais voltada para o âmbito regional, onde estabelece uma série de alianças e cooperações.
A Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC) é uma delas, cuja finalidade é a ajuda militar aos Estados membros contra qualquer agressão. Além da Rússia, Armênia, Belarus, Cazaquistão, Quirguistão e Tajiquistão compõem a organização, que foi formada no começo dos anos de 1990, depois do fim do Pacto de Varsóvia.
Em movimentações recentes da OTSC, Forças Armadas de Belarus e Rússia realizaram exercícios militares conjuntos e posicionaram tropas em suas fronteiras com a Ucrânia antes da guerra.
No Cazaquistão, para conter protestos contra o governo, paraquedistas russos foram enviados a pedido do presidente cazaque, para ajudar a estabilizar o país. Entretanto, o Cazaquistão não reconhece a independência de regiões separatistas da Ucrânia.
Em contrapartida, o governo da Síria é explícito ao reconhecer tais regiões controladas por separatistas, até mesmo sugerindo o envio de tropas.
O governo Putin foi o maior aliado do governo de Bashar al-Assad durante a guerra civil na Síria, e considerado fundamental para garantir a continuidade do governo sírio. A Rússia, inclusive, mantém bases militares no país.
O maior aliado do Estado russo é o Estado chinês, a despeito de posições cautelosas deste sobre a guerra diante de possíveis retaliações econômicas e políticas ocidentais.
Rússia e China mantêm estreitas relações econômicas e militares, baseadas nas visões de seus governantes sobre o Ocidente: uma ameaça e em declínio.
Sobre a Guerra na Ucrânia, os chineses advertiram que a Otan tem uma posição agressiva e não respeita o direito soberano dos países defenderem seu território.
Além disso, rechaçaram as sanções contra a Rússia e as classificaram como ilegais. Importante mencionar que Rússia e China são membros da Organização de Cooperação de Xangai (OCX), organização econômica e militar fundada em 2001.
A OCX é composta por nove Estados membros: Cazaquistão, Índia, Irã, Paquistão, Quirguistão, Tajiquistão e Uzbequistão, além de China e Rússia; e conta com três Estados observadores: Afeganistão, Belarus e Mongólia. Seus membros, alguns deles potências nucleares, abrangem cerca de metade da população mundial e algo em torno de 30% do PIB global.
Outra relação digna de nota é a entre Rússia e Índia, que mantêm profícuas relações econômicas, com destaque para a exportação russa de armas. Por outro lado, os indianos importam cerca de 80% do petróleo que consomem, mas pouco da Rússia.
Com a alta do preço do barril, a Rússia está oferecendo petróleo e outras commodities com desconto, o que ajuda a reduzir o problema indiano de energia. Todos os Estados membros da OTSC, além da Síria, China e Índia não votaram na ONU a favor da resolução que condenava o Estado russo.
Ressaltamos, ainda, que o governo russo oficializou que não aceitará pagamentos em dólares ou euros por petróleo e gás, enquanto Arábia Saudita, maior exportadora de petróleo e tradicional aliada dos Estados Unidos, está em negociações avançadas com a China para fixar o preço em yuan de parte de suas vendas. São golpes duros contra a dolarização de economia mundial.
Diante destes elementos (não exaustivos) apresentados, que sinalizam uma possível mudança de eixo da economia política mundial para a Ásia, o governo Biden propõe para as Forças Armadas estadunidenses um dos maiores investimentos militares da história: 813 bilhões de dólares para gastos em “defesa”, dos quais, 682 milhões seriam para a Ucrânia, com o intuito principal de combater os russos. Outros 6,9 bilhões seriam destinados para a Otan.
Um sinal de que a potência suprema do capitalismo mundial vai lutar com ferro e sangue para manter seu status. Na história do capitalismo, as transformações profundas no sistema internacional vêm acompanhadas de fome, miséria e morte.
A Guerra de Independência dos Estados Unidos, a Revolução Francesa e as Guerras Napoleônicas estabeleceram a supremacia mundial dos europeus, particularmente da Inglaterra.
As duas Guerras Mundiais do século 20 (1914-1918/1939-1945) fizeram despontar os Estados Unidos como potência líder do Ocidente capitalista, enquanto que a Revolução Russa de 1917 e a Revolução Chinesa de 1949 projetaram seus Estados à condição de potências mundiais anticapitalistas.
As várias guerras imperialistas capitaneadas pelos estadunidenses na periferia do sistema internacional, como a Guerra no Afeganistão, na década de 1980, e intervenções da Otan, como na Iugoslávia, na década de 1990, e da ONU serviram para derrotar a União Soviética e alçar os Estados Unidos como única potência global no período recente, quase que incontestável chefe e administradora do capitalismo mundial. Agora, isso parece estar em xeque e a Guerra na Ucrânia demonstra elementos de um processo de transição.
Caio Bugiato é professor de Ciência Política e Relações Internacionais da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) e do programa de pós-graduação em Relações Internacionais da UFABC (Universidade Federal do ABC)