Guerra da Ucrânia pode atrapalhar formação de gabinete na Itália após ascensão da extrema direita ao poder
05 de outubro de 2022 - 11h26
Uma visão em escala de Giorgia Ultradireita Meloni
Por James Onnig
O que pensar de um partido que tem raízes históricas profundas no fascismo e cujo nome vem do próprio hino do país? Pois é, esse é um breve cartão de visitas da agremiação que talvez esteja a frente do governo italiano. A liderança de Giorgia Meloni, uma das fundadoras, em 2012, do ultradireitista Fratelli d´Italia (primeiro verso do hino de Mameli), é mais uma das apostas das forças conservadoras para encontrar uma representante de seus anseios ultranacionalistas.
Entusiastas enxergam Meloni como a versão italiana de uma Marine Le Pen dos tempos que compactuava abertamente com o discurso xenófobo de seu pai, o quase centenário líder ultradireitista francês Jean-Marie Le Pen.
O Fratelli d´Italia é um dos herdeiros de um bloco fascista com raízes na história política. Elas estão fincadas no Movimento Social Italiano (MSI), grupamento que defendia o legado do fascismo no pós Segunda Guerra. Os fundadores, líderes e deputados eleitos em 1948 pelo MSI, eram remanescentes da República de Saló (cidade do norte da Itália), Estado fantoche criado e protegido pelos nazistas para abrigar Benito Mussolini e seus comandados depois de derrotados pela invasão aliada de setembro de 1943 e que durou mal e porcamente até 1945.
O discurso nostálgico do MSI era uma tentativa de contraponto ao discurso social-democrata e das esquerdas. As oscilações nos pleitos levaram os dirigentes a promover uma lenta e gradual modernização institucional do partido. Em 1995, o MSI é rebatizado com o nome de Aliança Nacional. De suas fissuras e fraturas surgiram inúmeros grupos de amplitude nacional e outros de atuação regional. Foi nessa virada que algumas das bandeiras e dos slogans de cunho totalitário foram escanteadas, pelo menos em tese. O Fratelli d´Italia e a própria Giorgia Meloni rejeitam qualquer identificação com o ideário fascista em geral.
Sugiro a leitura do artigo da juíza Cláudia Dadico, publicado pelo Brasil de Fato, em abril deste ano. Ela cita o intelectual Giorgio Agamben e a importância das terminologias e retoma conceitos expressos por Nicos Poulantzas(1936-1979) que desembocam na expressão “pós-fascismo” como representação das ideias em seu tempo histórico e idiossincrático.
Voltemos a Meloni. Ela é parlamentar desde 2006, portanto não é uma “outsider”. Foi ministra de Assuntos para Juventude do governo Berlusconi entre 2008 e 2011, cargo que catapultou sua carreira política encorajando-a a lançar seu próprio partido. Seus desafios para os próximos anos, caso se concretize sua indicação para a chefia de governo, são instigantes.
Os fundamentos políticos do Fratelli d´Italia apontam para um discurso mais federalista. Matteo Salvini, um dos coligados do bloco, tem seu discurso fortemente marcado pela defesa da autonomia regional. Seu partido, a Liga Norte, esteve no centro dos movimentos separatistas de décadas atrás.
Mesmo afastada de qualquer possibilidade de ruptura institucional, Giorgia Meloni vai ter que compor também com o Força Itália, de Silvio Berlusconi, que retorna como senador e seu grupo político reaparece com sede de poder.
Em escala continental obviamente as coisas ganham outra dimensão. A coalizão vencedora das eleições italianas está eivada por um outrora discurso Eurocético que questionou em letras garrafais a zona do Euro e o própria União Europeia. Os altos índices de apoio da população italiana ao bloco mudaram o comportamento do trio Salvini – Meloni – Berlusconi, que adotou um silêncio um tanto quanto repentino em relação ao tema.
A veemência e a verve na defesa do conservadorismo também chamam à atenção. Do núcleo próximo de Meloni surge um exemplo paradigmático dessa eleição: Lavinia Munnino conquistou uma vaga no Senado com um discurso pautado no combate aos lobbies LGBTQIAP+ e uma defesa intransigente de políticas de incentivo a natalidade. Ela desbancou Emma Bonini, histórica militante dos Direitos Civis e Humanos, cuja história está ligada ao discurso antiarmamentista desde a Guerra Fria, passando pela defesa da legalização do aborto e da implementação do divórcio na Itália.
Esse corolário conservador tem ainda em seus fundamentos a repulsa aos fluxos migratórios. O Fratelli D´Italia prega o controle radical das fronteiras e usa de argumentos um tanto quanto mofados quando contrapostos aos números. Podemos explorar esse assunto em um próximo artigo. Meloni soca o púlpito quando defende que o trabalho deve ser primeiramente oferecido aos italianos.
É importante lembrar que a política da União Europeia para os imigrantes passa pela atuação da Frontex – Agência Europeia de Guarda Costeira, formada por equipes especializadas no monitoramento de fronteiras. Hoje a agência tem pouco mais de 1.500 funcionários e que mudanças orçamentarias apoiadas pelo bloco parlamentar europeu do qual faz parte o Fratelli D´Italia vão catapultar o órgão para mais de 10 mil funcionários nos próximos anos.
Nos últimos dias as tensões em torno do tema da energia já ensejaram falas inflamadas de Meloni antes mesmo de assumir o cargo de mrimeira-ministra. Reuniões a portas fechadas com Berlusconi e declarações de cunho nacionalista sobre a defesa dos preços e do abastecimento já criaram um clima de expectativas.
A Guerra Russo-Ucraniana obviamente está no olhar de Meloni. Seus fiadores, Berlusconi e Salvini, têm posições firmes sobre o assunto dentro dos corredores da política internacional. Salvini é abertamente contra as sanções pesadas a Putin. Seu reduto eleitoral, o norte industrial genericamente conhecido como Vale do Pó, poderá ser muito afetado em um eventual racionamento de energia. Berlusconi por sua vez tem relações pessoais com Putin desde sua passagem pela liderança italiana.
Nas últimas horas, uma declaração que se antagoniza com a de seus fiadores turvou levemente a formação imediata de um novo gabinete. Meloni garantiu manter o apoio substancial do atual governo italiano para a Ucrânia.
Nos bastidores, constrangimentos inevitáveis. Bilionários russos estão tendo bens bloqueados na Itália. Edouard Khudaynatov, magnata do setor energético, teve uma mansão no litoral italiano arrestada por sua amizade e apoio a Putin. Grigori Berezkin, presidente do ESN, um dos maiores fundos de investimentos russos, também teve uma propriedade bloqueada em obediência ao acordo europeu que pune a Rússia.
Todo mundo quer saber se a guerra entre russos e ucranianos vai acabar dificultando a formação de um Gabinete Meloni na Itália. Giorgia continua pronta e resoluta.
James Onnig é professor de Geopolítica da Facamp (Faculdades de Campinas)