Apoie o holofote!
Busca Menu

GUERRA NA UCRÂNIA

Estados Unidos foram único país até hoje a jogar bombas atômicas sobre população

07 de março de 2022 - 04h43

Maldita Rússia!

 

Por Yuri Carajelescov

Há um país que aniquilou seus indígenas e, com esse know-how impregnado em seu modo prático de pensar e resolver problemas, fez desaparecer do planeta aproximadamente 200 mil japoneses em poucos minutos. A justificativa: testar a bomba atômica e garantir um aliado submisso no Pacífico.

Há um país que lançou sobre aldeias inteiras do sudeste asiático agente laranja. Trata-se de um produto que desfolha, despela as pessoas e provoca danos biológicos por mais de meio século. A justificativa: lutar contra os comunistas.

Há um país que despejou bombas sobre a Mesopotâmia, um dos berços da civilização como a conhecemos. A justificativa: o povo que lá vive, por sinal ex-aliado, tinha armas de destruição em massa. Não as tinha. Nunca as teve.

Mas o que importa a destruição assistida pela vibrante CNN desde que os recursos naturais possam ser drenados ou a terra reconstruída por empreiteiras amigas? Para os espíritos menos insensíveis, tratou-se de uma operação contra as areias do deserto e não contra seres humanos de olhos azuis.

Há um país que, em nome dos direitos humanos – apesar de esse mesmo país se recusar a ratificar tratados internacionais de direitos humanos -, tenta inviabilizar de todas as formas possíveis uma ilha que ousou desafiá-lo por um modo próprio de viver.

A ilha resiste, se destaca em biotecnologia e em dar lições de generosidade ao mundo com suas equipes médicas sempre a postos a colaborar, apesar de um embargo econômico desumano e covarde que lhe foi imposto.

O país referido nela mantém uma base militar ilegítima, local onde não se aplica a lei desse mesmo país e nem a convenção de Genebra. Para lá, esse país conduz mediante sequestro “terroristas”, que passam a viver em um limbo jurídico, em uma terra sem lei e sem limites ao poder.

Sobejam denúncias de tortura e todo o tipo de violações de direitos humanos. Quando os prisioneiros fazem greve de fome, os militares desse país introduzem um tubo na garganta dos dissonantes com uma pasta alimentar para que não morram e confessem. Até os gansos do Périgord são mais bem tratados.

Pano rápido: um desses sequestrados comprovadamente passou por solo alemão, mas, é provável, que nesse dia o tribunal constitucional, tão cioso dos direitos e garantias fundamentais, estivesse em recesso…

Não acredito que tenha feito vistas grossas a tamanho descalabro, apesar de um experimentado diplomata brasileiro relatar que aquele país referido tem só dois tipos de aliados: os que eles fingem consultar e o que eles fazem engolir as decisões com farinha seca.

Há um país que é contumaz em apoiar golpes de estado brutais em um espaço político e geográfico que considera “seu quintal”, sempre, é claro, em nome da democracia e da liberdade.

Há um país que apoia um outro país que mantém pessoas em guetos, desapossadas de seu próprio país. Afinal, palestinos não são gente. E como cantaram Gil e Caetano, pobres são como podres.

Esse mesmo país resolveu cercar outro país, a despeito de compromisso assumido no final dos anos 1990 em contrário, valendo-se da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), que nasceu em 1949 como instrumento operacional de defesa no contexto da guerra fria, mas se manteve até o presente, passadas três décadas da derrocada da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas).

Para tanto, levou suas bases militares a diversos países que antes integravam o Pacto de Varsóvia (Albânia, Bulgária, Estônia, Hungria, Letônia, Lituânia, Polônia e República Tcheca).

Como a Ucrânia resistisse a esse movimento, promoveu uma “revolução colorida” que alçou ao poder grupos de oligarcas locais aliados a neonazistas que romperam com a posição de neutralidade do governo deposto e lhe prometeram franquear o espaço fronteiriço.

O novo establishment ucraniano incorporou a suas forças regulares milícias neonazis (Azov e C14). Essas passaram, com a tolerância de Kiev, a atacar grupos e pessoas de etnia russa especialmente a leste em uma guerra silenciosa que se estende desde 2014 e que o protocolo de Minsk não fez cessar.

A Ucrânia serviria de ponte para se atingir o Estado-alvo, pois os geoestrategistas daquele país entendem, como referido por Christopher Fettweis, que, em função da posição geográfica e das reservas energéticas, quem “controla o Leste Europeu comanda o heartland (o coração do mundo); aquele que controla o heartland comanda a ilha-mundo; aquele que controla a ilha-mundo comanda o Mundo.”

Esse país que se arvorou a patrulheiro do universo, com esse histórico de intervenções citado de forma bastante resumida, já que haveria muito mais a se relatar, não é a Rússia.

Açulada por militares hostis e na iminência de ver o território por onde foi invadida primeiro por Napoleão e depois por Hitler servir de base operacional para mísseis atômicos a 6 minutos de voo de Moscou, esgotadas as tentativas diplomáticas de colocar fim ao impasse, reconhecendo a independência de Donetsk e Luhansk, comunidades geográfica e historicamente russas espicaçadas por comandos de neonazis, a Rússia colocou-se em ação militar contra a Ucrânia, um Estado-meio, para escapar da armadilha que lhe pretendia garrotear.

O mesmo mundo autorreferido civilizado, que compactuou com toda a sorte de violações internacionais desde que servissem aos interesses geopolíticos daquele outro país que não é a Rússia, em uníssono, passou a condenar a ação e heroificar a resistência ucraniana, pouco importando se, em larga medida, sustentada inclusive por nazistas atualizados e a serviço de interesses verdadeiramente imperialistas.

Convenientemente, voltaram a valer no contexto do direito internacional conceitos até então em desuso como autodeterminação e soberania.

Os aparelhos de propaganda desse país, os quais hegemonizam a informação no globo, apagaram o contexto histórico da ação militar, borraram os papéis e colocaram em marcha as estereotipificações de sempre.

“Neopacifistas” vendem a mesma mensagem maniqueísta de fácil assimilação segundo a qual a guerra se desenrola entre mocinhos e bandidos, provavelmente resgatada de algum escaninho perdido da época da guerra fria. Até entidades privadas reconhecidamente corruptas como a Fifa entraram no coro.

Ocorre que, a 10 mil quilômetros de distância do conflito, em um país periférico igualmente vítima de um movimento de desestabilização, uma parte da esquerda resolveu encampar acriticamente o discurso oficial ditado a partir dos releases de Washington, o que não chega ser inédito.

Foi assim também em 2013, com as tais “jornadas dos jovens”, quando aderiu e legitimou o que seria a semente do golpe de 2016, por conveniência ou receio de se contrapor ao mesmo aparelho de propaganda que vê tanta soberania na Ucrânia e nenhuma na Venezuela ou em Cuba, para ficar novamente com a prosa de Caetano e Gil.

O desfecho dessa história de adesão incondicional ao mainstream é conhecido e nada alvissareiro. Afinal, seria difícil perceber que o trajeto da russofobia ao anticomunismo e à estigmatização de toda a esquerda se faz em um pulo?

É um truísmo dizer que a guerra é abominável e que os conflitos entre os países devem ser resolvidos pela via diplomática.

Beira a desonestidade intelectual, no entanto, em nome da paz, colocar todos os conflitos bélicos na mesma calha, este em particular, quando até mesmo órgãos de imprensa como o The New York Times, por um de seus mais importantes editorialistas, reconhece que o país hegemônico esticou demais a corda com a Rússia (“This is Putin’s war. But America and Nato aren’t innocent bystanders”, publicado no dia 21 de fevereiro).

Não se trata de Noam Chomsky, notório crítico antissistema, mas do NYT! Da mesma forma, é indecoroso cerrar fileiras e não apontar a hipocrisia reinante entre os “neopacifistas”, os quais há pouco se regozijavam com as bombas varando o céu de Bagdá ou com uma possível invasão da Venezuela, o que até mesmo Bernie Sanders, um político do espectro democrata, tem denunciado.

No lado oposto, tributária das tradições da esquerda anti-imperialista, a presidenta Dilma Rousseff pontuou: “Se você não conhece as causas profundas do conflito, a paz é uma palavra de ordem vazia”. Ela está coberta de razão. No fundo, a monumental reação ocidental que arrebatou a esquerda mais emotiva são as dores do parto de uma nova ordem mundial verdadeiramente multipolar e, por isso, mais equilibrada.

 

Yuri Carajelescov é mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra, Portugal, doutor em Direito Econômico pela USP (Universidade de São Paulo) e membro fundador da ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia)


Comentários

Ygor Alves

14/03/2022 - 09h40

Mandou muitíssimo bem, parabéns.

Deixe seu comentário

Outras matérias