Cobertura da mídia ocidental sobre Guerra na Ucrânia fortalece retórica militarista
04 de abril de 2022 - 10h10
Os coveiros da Ucrânia
Por Flávio Aguiar, de Berlim
A Ucrânia sairá destroçada desta guerra, seja qual for o seu resultado. 10% de sua população já fugiu do país, de acordo com dados da ONU.
Grande parte de sua infraestrutura está destruída ou seriamente prejudicada. Politicamente, os grupos de extrema-direita estão sendo reforçados, embora o destino do principal deles, o Batalhão Azov, ainda seja incerto, pois uma parte substantiva dele está cercada em Mariupol.
Outra parte segue bastante ativa em Kiev, a capital, garantindo, segundo alguns informes, a própria segurança do presidente Zelensky.
As responsabilidades pelo naufrágio do país são variadas e bem distribuídas. Alguns países da Otan insuflaram o governo de Kiev a se armar, adubando o desejo deste entrar para a organização, enviando-lhe armas e mais armas, além de propiciar o financiamento e o treinamento dos militares ucranianos, incluindo os de extrema-direita.
Zelensky também é responsável pelo destroçamento de seu país, com sua teimosia em não ceder um milímetro antes do confronto, e depois construindo cuidadosamente junto à mídia mainstream ocidental sua imagem de “defensor da democracia” e líder da “resistência heroica” contra o invasor.
O governo russo, liderado por Vladimir Putin, promoveu a condenável invasão do território ucraniano, entrando num labirinto geopolítico carregado por dúvidas e incertezas: fica por ver como ele sairá da empreitada.
Um indício desta dificuldade foi a condenação da invasão russa na Assembleia Geral da ONU, por uma esmagadora quantidade de votos (141 em 193) e também de abstenções (35), além de ausências significativas, como a da Venezuela e do Cazaquistão.
Outro coveiro da Ucrânia foi a já mencionada e criminosa mídia mainstream do Ocidente, sobretudo a norte-americana e a europeia. Desde os antecedentes do confronto, esta mídia assumiu tendenciosamente alguns princípios de cobertura e abraçou tendências editoriais que podem assim ser enumeradas:
1. Responsabilizar unicamente a Rússia no caso da eclosão da guerra, o que acabou acontecendo.
2. Apresentar o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky como um “herói da resistência”, defensor de “valores democráticos e do princípio da soberania nacional” contra o “imperialismo russo”.
3. Absolver de antemão qualquer responsabilidade da Otan, dos Estados Unidos e do Reino Unido pelo conflito.
4. Minimizar, ou simplesmente ignorar o papel dos grupos neonazistas nas Forças Armadas e no governo da Ucrânia.
5. Descrever unicamente atrocidades atribuídas às Forças Armadas russas pelas autoridades ucranianas, elevadas à categoria de “donas da verdade” sobre os fatos nos campos de batalha.
6. Recobrir os acontecimentos com um vocabulário emanado dos tempos da Segunda Guerra Mundial, em favor do governo ucraniano. Assim, por exemplo, a recuperação de territórios por parte deste é sistematicamente descrita como uma “liberação”, termo herdado da ação dos aliados ocidentais no conflito de oitenta anos atrás. Nos casos mais exagerados, Zelensky é comparado a Churchill e Putin a Hitler.
7. Descrever a invasão russa antecipadamente e sempre como um “fracasso militar”, enaltecendo a capacidade de resistência das Forças Armadas ucranianas.
A resultante desta cobertura midiática tem sido:
1. O fortalecimento de uma retórica militarista em todas as frentes. Um exemplo disto é ver um artista de cinema pedindo a milionários que comprem aviões de combate para a Ucrânia. A defesa do pacifismo e da diplomacia entrou em baixa em todos os quadrantes.
2. A exacerbação da russofobia, ajudando a promover atitudes que vão desde o fortalecimento de um sentimento de “vendetta” contra seu passado soviético até coisas ridículas, como a suspensão de um curso sobre a obra de Dostoiévski e o “cancelamento” de pratos como o estrogonofe em restaurantes e da vodka em supermercados, ou oportunistas, como a suspensão de espetáculos de balé ou a demissão de maestros por serem russos.
3. A promoção de atitudes de censura, como a suspeita em que está colocado o uso da letra “Z”, símbolo de identificação dos tanques russos, em países da Europa. Outra manifestação semelhante foi a exigência de declarações anti-Putin por parte de artistas russos para poderem se apresentar. E se é verdade que o governo de Putin censura a oposição à guerra, também é verdade que a mídia russa está censurada no Ocidente e que o governo de Kiev ordenou o fechamento dos partidos de oposição.
De todo este emaranhado emanam algumas certezas:
1. O mundo que sairá desta guerra será pior do que o de antes dela.
2. Haverá mais inflação sobretudo no preço dos alimentos e da energia. Haverá mais fome e doenças devido à desnutrição.
3. O militarismo será robustecido no mundo inteiro.
Dois outros desdobramentos cujas consequências deverão ser averiguadas no futuro:
1. As corporações norte-americanas e britânicas continuarão sua busca de controle mundial de fontes e mercados de energia. Neste último caso disputarão palmo a palmo com a Rússia o fornecimento de gás para a Europa.
2. Uma outra, ainda subterrânea: há comentários em meios financeiros de que alguns países, entre eles o Brasil, estão procurando reforçar suas reservas em moeda chinesa. Isto aponta para a ideia de que até o momento o único país vencedor desta estupidez toda é a China.
Flávio Aguiar é professor aposentado de Literatura Brasileira da USP (Universidade de São Paulo), ganhou por quatro vezes o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro (duas individualmente e duas por obras coletivas), tem mais de 30 livros de crítica literária, ficção e poesia publicados, o mais recente é O legado de Capitu (2017), mora em Berlim, na Alemanha, desde 2007, é analista político da Agência Radio-France Internacional e correspondente do Holofote.