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CONFLITO COM AZERBAIJÃO

Armênia vive tragédia humanitária, mas Rússia ignora antiga aliada de olho no apoio da Turquia no pós-guerra

02 de março de 2023 - 12h09

Você já ouviu falar da Ucrânia? E de Artsakh?

 

Olhos do mundo na Ucrânia enquanto Erdogan (Turquia) e Aliyev (Azerbaijão) comemoram 20 anos de poder e parceria isolando 120 mil civis armênios em Artsakh

Por James Onnig

Quando em 2012 azerbaijanos e russos não renovaram o contrato de aluguel da estação de radares russos de Gabala, 200 quilômetros a noroeste de Baku, o afastamento formal entre as ex-repúblicas soviéticas alcançava um novo patamar nas relações diplomáticas marcadas por períodos mais e menos amistosos.

Já era perceptível que o Kremlin teria um tabuleiro complexo no Cáucaso. Em 1999, o Azerbaijão se retirou oficialmente da Organização do Tratado de Segurança Coletiva – CSTO na sigla em inglês, acordo militar de proteção mútua entre algumas das ex-repúblicas soviéticas.

O então presidente Heydar Aliyev (1923-2003) acusava os russos de serem lenientes com os armênios de Nagorno-Karabakh (Artsakh para aos armênios) que recuperaram sua liberdade depois de décadas de subordinação ao governo da República Socialista Soviética do Azerbaijão.

Ao vencerem o conflito por volta de 1994, os armênios da República de Artsakh (não reconhecida) passaram a contar com apoio da República da Armênia, aliada russa de primeira hora. Assim, para Aliyev era incompatível fazer parte do CSTO.

De maneira geral, entre 1999 e 2012, as lideranças azerbaijanas estabeleceram os pilares geopolíticos e geoestratégicos do país: usar politicamente seu poderio energético (gás e petróleo) e se projetar internacionalmente na esteira dos elos históricos e culturais com a Turquia.

No ano de 2000, por exemplo, um acordo entre Turquia e Azerbaijão criou o Centro de Treinamento e Educação das Forças Armadas, que colocava a disposição de Baku conhecimentos técnico-militares turcos. Daí em diante o Azerbaijão instrumentalizou esse pan-nacionalismo fraterno com a Turquia, membra da Otan desde 1952, para avançar para além das parcerias protocolares com a aliança militar ocidental típicas dos anos de 1990 como o “Paternership for Peace”.

A partir de 2003 na Turquia da Era Erdogan o mote “Uma nação, dois Estados” ganhou força para se referir aos elos com o Azerbaijão que também passou a ter um novo líder, Ilham Aliyev, filho do antigo presidente.

Para Ancara, o Azerbaijão é uma ponta de lança política e territorial com propósitos de resgatar laços com as antigas repúblicas soviéticas da Ásia Central, com quem tem profundos elos histórico-culturais, e ampliar assim sua área de influência consolidando-se como uma potência regional. Vide a Organização dos Estados Turcos, antigo Conselho de Cooperação dos Estados de Língua Turca, criada neste contexto em 2009 e que congrega diversos países daquela região.

Além da simbologia de ambos estarem no poder no mesmo período, a parceria Erdogan – Aliyev alterou realmente o jogo geopolítico do Cáucaso. Os recursos energéticos do Azerbaijão ganharam ainda mais importância em um cenário de agudização das relações do Ocidente com a Rússia, Irã e China. Isso pode ser comprovado pelos vultosos investimentos dos grandes conglomerados petrolíferos internacionais no Azerbaijão, considerado por muitos analistas como o principal “landlocked countries” (países sem litoral em mar aberto).

Erdogan por sua vez passou a ocupar uma posição de avalista neste e em muitos outros temas da agenda internacional. O território turco se converteu em um dos pontos nodais de uma nova geopolítica.

Assim, desde os campos de hidrocarbonetos de Shah Deniz no Cáspio azerbaijano até o terminal de Erzurum ou o Porto de Yumurtalik, ambos na Turquia, desenvolveu-se uma forte parceria entre a gigante British Petroleum, a SOCAR (State Oil Company Azerbaijan Republic) e a estatal turca TPAO, todas acionistas de extensos gasodutos e oleodutos que cingem toda a região.

Esse empoderamento turco-azerbaijano esconde um grave problema. Para fortalecer seus elos, até mesmo em escala físico-territorial, ambos buscam a subordinação da Armênia e dos armênios do Cáucaso aos seus interesses.

De um lado, a Turquia mantém fechadas as fronteiras terrestres com a Armênia, que não tem saída para o mar. Do outro lado, o Azerbaijão fustiga a população armênia de Artsakh desde quando foram derrotados em 1994 com sucessivos e incessantes rompimentos de cessar-fogo.

Resultado desse longo processo de fortalecimento vindo do apoio da Turquia e de outros países, entre eles Israel, o Azerbaijão em 2020 lançou um violentíssimo ataque contra Artsakh e a fronteira da Armênia.

Ao fim de 40 dias e com cinco mil jovens soldados armênios mortos e centenas de prisioneiros civis, os representantes armênios assinaram a capitulação e a região de Artsakh perdeu grande parte de seu território. Nos acordos de novembro de 2020, ambas as partes aceitaram a mediação de tropas de paz russas nas linhas de contato.

O capítulo mais recente dessa ofensiva anti–armênia no Cáucaso começou em dezembro passado. Um obscuro grupo de ambientalistas azerbaijanos bloqueou a única ligação de Artsakh com a Armênia, conhecida como Corredor de Lachin, protestando contra atividades mineradoras na região. Desde então, 120 mil armênios de Artsakh, entre eles obviamente crianças e idosos, estão desabastecidos de remédios e alimentos e ainda passam horas sem energia em pleno inverno, já que invariavelmente os azerbaijanos interrompem o fornecimento.

O risco de genocídio é real. Muitos devem estar se perguntando, e as tropas russas? Nada fizeram ou fazem?

Ao que parece, para além das preocupações com a frente ucraniana, está em curso uma gradual mudança de postura russa em relação ao seu “near abroad” do Cáucaso Sul. Desenham-se novos arranjos entre Turquia e Rússia.

Se por um lado Erdogan forneceu os temidos drones Bayraktar para a Ucrânia no começo do conflito, por outro, o país não fechou o espaço aéreo para aeronaves russas e tem se mostrado contra, por motivos próprios, a ampliação da Otan, coisa que interessa a Putin.

Ao não confrontar de forma mais incisiva os interesses turcos-azerbaijanos, para defender a aliada Armênia, parece que Putin quer deixar uma porta aberta para diálogos com a Turquia pós conflito ucraniano.

Ocorre que a antiga ideia do “no peace, no war”, para expressar situações tensas, porém de baixo impacto, se transformou em uma grande mentira. As posições da chancelaria russa não dão muitas esperanças para a população armênia.

Estamos em mais uma tragédia humanitária, dessa vez contra a população armênia de Artsakh e pelo andar da carruagem podem colocar em risco a existência da própria República da Armênia. Com a palavra a comunidade internacional.

 

James Onnig é professor de Geopolítica da Facamp (Faculdades de Campinas)


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