Não existe feminismo, mas feminismos, defende antropóloga; diversidade de realidades é enorme
08 de março de 2022 - 15h59
Feminismos no plural
Por Jacque Parmigiani
O feminismo como movimento de emancipação das mulheres nasceu no contexto das revoluções burguesas e é marcado pela luta das mulheres por garantia de direitos individuais, igualdade de condições no mercado de trabalho, maior participação nas decisões sobre a vida nas cidades e o fim da violência de gênero.
Todas essas pautas, tão necessárias ainda hoje, não dão conta, entretanto, da diversidade de contextos e situações pelas quais as mulheres se organizam para lutar. Ainda que a opressão às mulheres atinja de forma transversal todas as classes sociais, ela é experimentada de modo muito diverso por mulheres em diferentes contextos.
As mulheres burguesas, brancas, heterossexuais possuem privilégios quando se as comparam com outras mulheres. Em diversos contextos de crise, sejam eles sociais, políticos, econômicos, climáticos, as mulheres pobres, não brancas e que vivem nas regiões mais periféricas do planeta, serão as mais duramente atingidas.
Todo um conjunto de fatores como etnia, raça, classe, orientação sexual atravessam esses contextos e produzem diferentes modos de organização e de luta das mulheres.
Hoje no Brasil as mulheres indígenas de várias etnias estão mobilizadas na luta pela preservação e demarcação de seus territórios.
Atuam ao lado de seus companheiros contra a invasão de suas terras por grupos de madeireiros, garimpeiros, fazendeiros e estão na linha de frente da luta por autonomia, pelo reconhecimento de suas identidades étnicas e, na defesa de seus modos de vida diferenciados, realizando nesse processo as mais potentes críticas ao desenvolvimento do capitalismo.
As mulheres indígenas estão também organizadas para ocupar os espaços públicos nas mais diversas instituições da sociedade abrangente e ainda se desdobram na luta por direitos e pelo fim da violência de gênero dentro de suas próprias aldeias.
Atualmente as mulheres muçulmanas lutam em diversos países pelo fim da intolerância religiosa e pelo direito de usar o véu. O governo do Estado de Karnataka, na Índia, recentemente proibiu o uso do hijab em escolas públicas de ensino médio, o que gerou uma série de protestos por todo o país.
As estudantes muçulmanas saíram às ruas com cartazes e palavras de ordem expressando a injustiça dessa proibição e denunciando que adeptos de outras religiões podem ostentar livremente sua fé através do uso de vestimentas e outros acessórios, um direito que para elas é negado por puro preconceito.
A luta pela descriminalização do aborto colocou milhares de mulheres nas ruas da Colômbia que se tornou, neste ano , o sexto país da América Latina a permitir a interrupção da gravidez, acompanhando decisões semelhantes já formalizadas na Argentina, em Cuba, na Guiana, no México e Uruguai.
Como resultado da luta das mulheres, todos esses países atualmente buscam desenvolver políticas para retirar os obstáculos ao exercício dos direitos sexuais e reprodutivos.
Em 2012, três mulheres negras foram as responsáveis pelo surgimento do movimento Black Lives Matter, quando protestaram contra a absolvição de um homem branco responsável pelo assassinato de um homem negro.
A luta contra a violência policial e as mortes de jovens negros no Brasil e nos Estados Unidos denunciam o racismo estrutural que atravessa de forma avassaladora as sociedades ocidentais na atualidade.
Só para se ter uma ideia, os negros representam a maioria da população carcerária no Brasil e o crescimento do encarceramento das mulheres negras aumenta a cada ano, em uma velocidade assustadora.
O relatório Infopen Mulheres 2016 do Ministério da Justiça aponta que esse crescimento chegou a quase 700% no período de 2000 a 2016. Uma evidência que demonstra que, nascer com a pele preta, é receber do próprio Estado uma sentença de prisão ou morte.
As mulheres negras acrescentam às suas pautas a necessidade de lutar contra a necropolítica que permite ao Estado aprisionar e exterminar seus corpos.
O Brasil é o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo. Em 2020, foram 175 assassinatos representando um crescimento em relação a 2019 de mais de 40%. As principais vítimas desses crimes são as travestis.
A média de vida de uma pessoa da população T é de apenas 35 anos, uma expectativa semelhante à da Idade Média. Mesmo experimentando todas as formas de violência essas mulheres animaram os mais significativos movimentos da comunidade LGBTQIA+ nas últimas décadas.
Esses e outros tantos eventos colocam as mulheres de todas as sociedades, etnias, orientações sexuais e classes sociais na condução das principais lutas do século 21. Essas lutas expressam as diversas formas de violências às quais as mulheres estão submetidas e dão visibilidade à multiplicidade de suas pautas.
Vivências tão distintas não podem ser colocadas em uma mesma matriz explicativa e é por essa razão que o feminismo deve ser debatido não como um movimento unitário homogeneizador, mas plural e multifacetado, e é também por isso que se torna cada vez mais frequente, para expressar toda essa riqueza de experiências, usar feminismos no plural.
Discutir feminismos no lugar de feminismo significa colocar em movimento uma nova perspectiva que nasce da luta das mulheres contra a dominação masculina, uma outra lógica que surge em resistência e oposição a essa dominação.
A luta das mulheres não se esgota na conquista de uma única pauta, não bastam mais vagas no mercado de trabalho, sem que se discuta o reconhecimento do trabalho doméstico como parte essencial dos modos de produzir e reproduzir das sociedades.
Do mesmo modo que não há fim da opressão enquanto as mulheres negras precisarem demonstrar que a vida de seus filhos é tão valiosa quanto a vida dos filhos das brancas.
Enquanto as mulheres indígenas precisarem lutar pela legitimidade e manutenção de seus modos de vida, as mulheres muçulmanas irem as ruas pelo direito de ostentar sua fé e as mulheres trans pelo reconhecimento de suas vidas.
Enquanto existir uma forma de sujeição de qualquer natureza, nenhuma mulher estará livre, pois essa opressão específica se colocará como a possibilidade para a produção novas formas de submissão.
Cada pequena vitória da luta das mulheres contra uma opressão contribui para o crescimento de uma nova percepção sobre a sociedade, uma nova consciência promovida a partir dessas lutas.
Romper com a lógica de dominação das sociedades patriarcais pode permitir a descoberta de novas formas de organização social, que valorizem a vida e ampliem as relações de solidariedade entre as pessoas.
Longe de serem percebidas como fragmentação, essas experiências de resistência e organização expressam antes de tudo uma ruptura epistemológica com uma das mais potentes lógicas das sociedades patriarcais ocidentais, a produção da homogeneidade que transforma o homem branco, rico, cristão e hetero no padrão universal do que é bom e correto.
Jacque Parmigiani é antropóloga, militante feminista e ecossocialista