Senado debate projeto que fixa preço dos livros para impedir domínio de grupos como Amazon
01 de junho de 2022 - 16h18
O Livro Socialista
Por Lincoln Secco
No Brasil avança o debate sobre a proposta de uma Lei do Preço Fixo do livro (ou Lei José Xavier Cortez), cuja relatoria é do senador Jean Paul Prates (PT-RN).
Inspirada na Lei Lang da França, a lei obrigaria todas as livrarias a limitar no máximo a 10% o desconto em uma publicação durante o primeiro ano após o seu lançamento.
Com isso, o pequeno comércio livreiro estaria protegido de grupos poderosos como a Amazon. A historiadora Marisa Midori Deaecto, professora de História do Livro na ECA e IEA/USP, defende ardorosamente a proposta de lei.
Ao conhecer essa sua nova frente de luta, lembrei do nosso velho professor Edgard Carone, bibliófilo e colecionador de livros socialistas e rascunhei algumas notas sobre uma realidade quase desaparecida: o livro nos países socialistas.
Os ciclos do livro no antigo bloco socialista acompanharam as vicissitudes da história do partido comunista. A Revolução Russa entronizou o livro como o principal veículo do agitprop (agitação e propaganda).
Lênin, que era um cultuador dos livros a ponto de se irritar com edições mal cuidadas, preocupou-se em garantir orçamento para bibliotecas e editoras. Aliás, todos os principais líderes bolcheviques devoravam livros e tentavam se impor nos debates com recurso à erudição.
Bukharin era um intelectual nato. Zinoviev escreveu uma História do Partido Bolchevique. Trotsky provavelmente era o mais talentoso deles e teve que levar ao exílio caixas enormes de livros e documentos. Stalin manteve uma ampla biblioteca pessoal com centenas de livros anotados.
Livros e agitprop
A propaganda consiste na formação política dos quadros que atuam permanentemente no partido ou nas organizações por ele influenciadas. A agitação visa atingir as massas em comícios, passeatas, greves, protestos, confrontos etc.
Resumindo, para Lênin a agitação vulgariza poucas ideias para muita gente e a propaganda difunde muitas ideias para um número menor de militantes. O agitprop não é uma soma de tarefas fixas rigidamente separadas, mas um conjunto de processos e relações entre pessoas. O objetivo é transformar cada vez mais membros das massas em quadros e alterar qualitativamente a relação entre dirigidos e dirigentes.
A agitação recorre a cartazes, volantes, panfletos, jornais etc. A propaganda utiliza cursos, debates teóricos e livros. Essa é uma distinção analítica, porque na prática jornais podem trazer capítulos de livros, debates teóricos e opúsculos; palestras podem servir à agitação.
O que nos importa aqui é que o livro tem uma função nuclear nessas atividades. Com a existência de um poder socialista, seu papel se faz muito mais importante em provocar a passagem da quantidade à qualidade, pois milhões de pessoas passam a ter acesso à teoria.
No período stalinista o conteúdo das edições tornou-se controlado. Em 1931 foi fundada a Editorial Progresso de Moscou. Por seu turno, a desestalinização refletiu-se em diversas reformas que afetaram a leitura.
O período Kruschev foi o da expansão da moradia urbana familiar, quando as pessoas conquistaram sua cozinha privativa. Isso fez com que se pudesse ser mais crítico e independente na vida privada. E também discutir obras semi proibidas, como a literatura manuscrita ou de mimeógrafo chamada de samizdat.
O filme Eu Tenho 20 Anos, dirigido por Marlen Khutsiev em 1964, mostra uma vida cultural em Moscou muito ativa e centrada no livro. Há pilhas de obras literárias num apartamento, bancas de livros usados, leitura pública de poemas etc. Por mais que houvesse a intenção de propaganda era significativo que o filme desse relevo ao livro.
Essa realidade levou o historiador francês Serge Wolikow a notar uma contradição entre a democratização da leitura e o controle autoritário sobre o seu conteúdo, portanto entre a quantidade e a qualidade. Contudo, o bloco socialista nunca foi uniforme.
Na Iugoslávia, após o rompimento com a União Soviética em 1948, o modo de produção e distribuição do livro foi descentralizado e o sistema de preços de mercado introduzido. Além disso, diminuiu a censura.
Distribuição
Em geral, todos os países socialistas tinham uma política para o livro. Na Alemanha Democrática, um decreto de 1973 determinou que as empresas deveriam ter uma biblioteca, com um bibliotecário.
Fábricas deveriam manter uma relação proporcional entre número de trabalhadores e de livros. As maiores deveriam ter 30 mil exemplares. Durante a existência do país, o número de livros impressos a cada ano mais que triplicou e incrementou-se a proporção daqueles que eram ficção.
Nos anos 1980, quando eu descobri as edições soviéticas em línguas estrangeiras, o socialismo se me apresentava basicamente como um mundo de livros. O papel que a teoria desempenhava entre os comunistas exigia muita leitura. Era natural que a ideologia soviética se difundisse especialmente por meio de impressos, já que se tratava de uma propaganda concentrada e dirigida pelo Estado.
Em São Paulo eu frequentava, salvo engano na rua Barão de Itapetininga, a Livraria Tecno Científica que importava livros da citada Editorial Progresso, além de vender assinaturas de revistas soviéticas a preços módicos.
A Editorial Progresso de Moscou só se tornou conhecida mundialmente a partir de 1963, quando assumiu o papel de casa publicadora de livros soviéticos em línguas estrangeiras. Naquele ano, a União Soviética reorganizou sua indústria editorial e a submeteu ao controle geral do Comitê Editorial do Estado, ligado ao Conselho de Ministros. Em última instância, o livro era um assunto da cúpula do poder.
Um efeito importante das Edições em Línguas Estrangeiras de Moscou foi a mudança qualitativa das traduções de Lênin ao português. Segundo a inovadora pesquisa de Fabiana Lontra, todas as traduções brasileiras de Lênin foram feitas, principalmente, a partir do francês e espanhol e nenhuma do original russo.
É possível que Otávio Brandão tenha traduzido artigos de Lênin diretamente do russo quando viveu na União Soviética. Mas não há nenhum livro de Lênin oficialmente traduzido por ele.
Em 1964, o editor Ênio Silveira pretendeu lançar as Obras Escolhidas traduzidas por Álvaro Vieira Pinto a partir do original russo, mas a ditadura destruiu os manuscritos da tradução. É possível que a decisão tivesse ou buscasse apoio em Moscou.
As Edições em Línguas Estrangeiras permitiram que Lênin fosse traduzido diretamente ao português de Portugal após a Revolução dos Cravos, graças à sociedade entre Avante! (editora do Partido Comunista Português) e Progresso. Os textos foram reproduzidos, depois de adaptação, por editoras brasileiras.
No aspecto quantitativo, os países socialistas deram um salto na oferta de bens culturais. Entre 1957 e 1961 a exportação anual média de livros da União Soviética foi de 35 milhões de exemplares, embora haja controvérsias estatísticas derivadas da definição do tamanho de um livro e da junção de livros e outros impressos (panfletos) na contagem. Também era o país que mais traduzia títulos de outras línguas.
Em títulos por milhão de habitantes (entre 1955 e 1971) a União Soviética saltou de 140 a 175 e os Estados Unidos de 66 a 278. A tiragem média na União Soviética em 1965 foi de 16.811. Entre os países que lideravam o mundo neste quesito estavam Alemanha Democrática (17.900), Hungria (11.300), Polônia (10.800), Bulgária (10.600), Chile (8.000), Iugoslávia (7.500) e Tchecoslováquia (7.300). Os países nórdicos lideravam a produção de títulos per capita.
Depois da queda
A auto-dissolução da União Soviética não foi apenas uma catástrofe geopolítica, para citar o controverso presidente Putin. Ela reduziu o nível cultural das nações que surgiram em seu lugar. A Editorial Progresso continuou existindo, sem apoio para difundir obras russas no exterior.
Qual o papel de uma editora socialista depois da queda de um bloco de países que supostamente representavam o futuro? Além disso, surgiu o desafio da Revolução Informática e, naturalmente, da internet. A digitalização ampliou o acesso aos textos, mas não eliminou o mercado de livros impressos. Consultamos livros e também telas de computadores de acordo com a finalidade da leitura e do preço das obras. Isso recoloca a questão dos custos, direitos autorais e lucro.
Nenhum militante de esquerda exige que advogados prestem consultoria a sindicatos e não cobrem. Que um criador de conteúdo marxista para uma plataforma de compartilhamento de vídeos não ganhe por isso. Apenas no mundo dos livros de esquerda há a cobrança por gratuidade e o desrespeito aos direitos autorais é comparado à quebra de uma patente de uma grande empresa farmacêutica.
Por outro lado, na prática dificilmente o texto digital pirateado substitui o impresso. A editora Lawrence and Wishart foi fundada em 1936 para difundir a literatura comunista na Inglaterra. Com o fim do bloco socialista e do próprio Partido Comunista da Grã Bretanha, a editora entrou em crise.
Em 2014 ela resolveu revogar a permissão para que o site Marxists Internet Archive mantivesse no ar a Marx/Engels Collected Works (MECW). Trata-se de sua principal coleção, editada entre 1975 e 2004 em 50 volumes. A justificativa é que a editora fecharia se não pudesse vender ela mesma as cópias impressas e, futuramente, digitais.
Decerto, muita gente perdeu o acesso a uma citação fácil e rápida de textos de Marx. Por outro, sem o esforço editorial, o trabalho de tradutores e o investimento financeiro, jamais teria existido a coleção. Como chegar a uma solução para esse dilema?
Trabalho coletivo e voluntário de tradução em rede é um primeiro passo, embora sujeito a muitos problemas. Exigir do Estado o investimento em bibliotecas públicas é outro. Solicitar que os partidos de esquerda mantenham editoras com obras impressas também. Mas como em todos os outros problemas da sociedade capitalista, só o socialismo poderá semear livros a mancheia e manter as pessoas que trabalham na sua cadeia produtiva.
Lincoln Secco é professor de História Contemporânea da USP (Universidade de São Paulo), membro do GMarx USP (Grupo de Estudos de História e Economia Política) e autor de História do PT (Ateliê, 5ª edição).