Sabesp paga milhões a acionistas, mas posterga ampliação de tarifa social para pobres
10 de agosto de 2022 - 09h22
Retrocessos na acessibilidade econômica dos serviços da Sabesp
Por Edson Aparecido Silva e Ricardo de Sousa Moretti
Há não mais que 150 anos, no Brasil entendia-se legítimo que um ser humano tirasse a vida de um outro que legalmente lhe pertencesse como escravo. Em que medida no Brasil de hoje superamos este quadro bizarro e reconhecemos o direito à vida em todas as suas dimensões?
Há atualmente uma disputa pelo reconhecimento constitucional do direito à água e ao esgotamento sanitário, o que não deixa de ser uma nova faceta do reconhecimento do direito à vida. Nestes últimos 150 anos a maior parte da população do país migrou para as cidades, que foram originalmente construídas perto das fontes de água por motivos óbvios.
Nas cidades o acesso à água foi se modificando: se inicialmente o abastecimento se dava diretamente nos córregos, poços e rios, gradativamente foi migrando para as fontes, os chafarizes e depois para os sistemas públicos de abastecimento de água potável servindo os domicílios.
O tratamento da água para abastecimento público foi uma verdadeira revolução, em razão da melhoria da saúde pública daí advinda. Porém, neste mesmo período, a ausência de sistemas adequados de coleta e tratamento de esgotos fez com que os corpos d’água urbanos se tornassem valões de despejo de resíduos, desafio que ainda não conseguimos superar. E o abastecimento de água direto nos corpos de água urbanos ficou inviável.
Nesse contexto de dependência dos sistemas públicos de abastecimento de água potável, como fica aquela parcela da população que não consegue pagar pelo serviço, que passou a ser cobrado?
No ano de 2010 a Organização das Nações Unidas aprovou a Resolução A/RES/64/292, da qual o Brasil é signatário, que reconhece explicitamente o direito humano à água e ao esgotamento sanitário como direito humano.
A preservação deste direito envolve diversas variáveis, entres as quais, a acessibilidade econômica que se relaciona com a garantia do acesso à água e ao esgotamento sanitário, independentemente da capacidade de pagamento e das condições e dos locais de moradia; a tarifa social, para aqueles que estão impossibilitados de pagar pelos custos dos serviços; o fornecimento mínimo de água e também a necessidade de atender às demandas de água e esgotamento sanitário, para quem não tem domicílio, caso da população em situação de rua.
A acessibilidade econômica integra o conteúdo normativo dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário, o que significa dizer que as pessoas precisam ter condições de pagar os custos de se ligar e usufruir dos serviços de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgotos. Os dispêndios com as taxas de ligação e tarifas cobradas pelos serviços não podem dificultar ou comprometer o acesso a outras necessidades e bens básicos como alimentos, moradia, saúde e educação.
Os direitos humanos não obrigam que os serviços sejam fornecidos de forma gratuita, porém, os Estados podem fornecer serviços gratuitos ou criar formas de subsídios que garantam a acessibilidade econômica dos serviços às famílias de baixa renda.
É muito usual no Brasil que a tarifa social seja um instrumento usado pelos prestadores de serviços de saneamento básico para atender as pessoas em processo de vulnerabilidade econômica, porém, os critérios utilizados para a definição das pessoas a serem enquadradas nessa tarifa, podem deixar muita gente em dificuldades financeiras, excluídas dessa política, como se verifica na leitura do e-book: Água como direito: tarifa social como estratégia para a acessibilidade econômica publicado pelo Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento, Ondas, em março do ano passado, com pesquisas nas capitais: Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Campo Grande, Porto Alegre, Manaus e no Distrito Federal.
Esses estudos mostraram a importância de facilitar e ampliar o acesso à tarifa social, por parte daqueles que têm dificuldade de pagar pelo serviço. Uma das formas propostas, foi a utilização do Cadastro Único dos Programas Sociais do governo federal (CadÚnico) para determinar as famílias elegíveis para a concessão da tarifa social, opção já adotada pelo setor elétrico.
No Estado de São Paulo, por ocasião da 3ª Revisão Tarifária Ordinária da Companhia de Saneamento Básico do Estado, Sabesp, estabeleceu-se um grande processo de debates sobre a reestruturação tarifária da empresa. Processo que teve início no ano de 2018 com a realização de simpósio com seis painéis, 35 apresentações que abordaram diferentes pontos de vista de interlocutores variados e, aproximadamente, 400 pessoas inscritas.
Todo esse esforço foi sequenciado por audiências e consultas públicas que receberam contribuições de representações da sociedade civil, prestadores de serviços e de pessoas físicas e foram concluídos no ano passado.
Inovações importantes foram aprovadas, entre as quais destacamos: (i) a alteração dos critérios para concessão da tarifa social de água e esgoto; (ii) a separação da tarifa relativa à coleta e ao tratamento de esgotos; (iii) o desdobramento da cobrança da conta de água em uma parcela fixa, referente à disponibilização do serviço e uma tarifa variável, relativa ao consumo total de água. Outro tópico importante é que o usuário que atendesse aos critérios de elegibilidade para tarifa residencial social ou residencial vulnerável não perderia o benefício em caso de inadimplência.
Várias simulações foram feitas até se alcançar o melhor equacionamento para a nova estrutura tarifária, com os objetivos de estimular o tratamento de esgotos, tornar mais acessível o acesso à água por parte das pessoas em situação de vulnerabilidade e estimular o uso racional da água, em especial nos domicílios com pequeno número de pessoas onde a cobrança mínima de 10 m³ desestimula o consumo racional. Evidentemente estas simulações adotaram como premissa a necessidade de preservar a receita total da Sabesp.
Os esforços realizados levaram à nova estrutura tarifária da Sabesp, explicitada através da Deliberação nº 1.150, de 8 de abril de 2021, publicada pela Agência Reguladora dos Serviços Públicos do Estado de São Paulo, que previa o início do processo de inclusão dos inscritos no CadÚnico em setembro do ano passado com conclusão em março de 2023.
Porém, o que seria uma conquista importante para uma parcela significativa da população que enfrenta dificuldades agravadas pela pandemia e pela crise da falta de emprego que afeta o país, foi postergada sem prazo para implementação, conforme consta da deliberação Arsesp nº 1.278, de 16 de março deste ano, que tratou dos novos valores das tarifas dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário prestados pela Sabesp.
Ou seja, foram mantidos os critérios excludentes que vigoram há vários anos, em total falta de respeito aos profissionais da própria Arsesp, dos usuários e representantes de entidades que participaram de forma ativa das consultas e audiências públicas promovidas pela Agência, que aprovaram a reestruturação tarifária de forma a estender o benefício da tarifa social a um número maior de pessoas.
Como pode ser explicada esta postergação quando a Sabesp apresenta resultados financeiros surpreendentemente favoráveis? A empresa de economia mista, controlada pelo governo do Estado de São Paulo, apresentou uma receita operacional líquida de 19,5 bilhões no ano passado e um lucro líquido de R$ 2,3 bilhões. Além disso autorizou o pagamento R$ 644,3 milhões, de juros sobre o capital próprio para os acionistas.
Esta suspensão da aplicação da resolução da Arsesp se caracteriza como claro desrespeito aos princípios democráticos. Retroceder nos critérios de aplicação da tarifa social é retroceder na concretização do direito à água, no direito à vida. Não é compreensível nem pode ser aceito o encaminhamento que foi dado pela Arsesp à questão. Urge exigir que o órgão que regula serviços públicos, deixe de ser capturado pelos interesses, nem sempre nobres, da Sabesp e de seus acionistas.
Edson Aparecido Silva é mestre em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC (Universidade Federal do ABC), secretário executivo do Ondas (Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento) e colaborador do Labluta (Laboratório de Justiça Territorial).
Ricardo de Sousa Moretti é professor do programa de Planejamento e Gestão do Território da UFABC, integrante do Conselho de Orientação do Ondas e colaborador do BrCidades e do Labluta.