Mudanças climáticas demonstram inviabilidade do capitalismo; ciência diz que é preciso contrair escala, mas capital não admite recuo
08 de março de 2022 - 18h51
Por uma ciência social do clima
Por Eduardo Sá Barreto
Quando o Holofote propôs que eu escrevesse para a seção de mudanças climáticas do portal, vi-me em uma situação complicada, porque já ocupo espaço semelhante em dois outros portais. Minha primeira avaliação é que seria muito difícil evitar a redundância. Contudo, ato contínuo, enxerguei uma chance de aproveitar a oportunidade para elaborar uma sequência de textos dedicados à formação.
Adotarei duas linhas principais, que irão organizar todas as minhas intervenções no Holofote. Por um lado, pretendo apresentar o que de melhor a ciência climática, tal como ela existe hoje, tem a nos oferecer: a compreensão de vários mecanismos naturais decisivos, as evidências e as projeções relativas a desdobramentos futuros.
Por outro lado, pretendo mostrar como esse conteúdo deve ser combinado a uma crítica ecológica do capitalismo. Quanto a isso, trata-se de apresentar as categorias marxistas da crítica da sociedade capitalista e demonstrar como elas podem ser mobilizadas para compreender a vocação ecologicamente destrutiva desta sociedade. Este texto de estreia é uma espécie de defesa desse formato.
Deveria ser ponto pacífico que para falar sobre mudanças climáticas, mesmo que de maneira coloquial e superficial, é necessário algum domínio mínimo dos termos que conformam nosso entendimento atual sobre o tema. Dada a presença cada vez mais ubíqua dos temas climáticos, é cada vez mais raro encontrarmos quem não domine ao menos esse mínimo.
Curiosamente, ao mesmo tempo, é cada vez mais frequente encontrarmos quem se dispõe a participar do debate público sem ter ido muito além desse mínimo. Muita coisa pode ajudar a explicar tal tipo de apreensão precária: desde o charlatanismo puro e simples até a ideologia (gratuita ou a soldo). Mas é outro determinante específico que me interessa abordar agora: o medo.
Não me refiro ao medo despertado pelas catástrofes ecológicas que tendem a desdobrar-se no rastro das mudanças climáticas. Refiro-me ao medo de encarar um conhecimento científico que tem uma aura de excessiva complexidade, de algo que seria impenetrável para um reles mortal.
Obviamente, não cometerei a sandice de afirmar que esse conhecimento não é complexo, sofisticado e que não apresenta grandes dificuldades. Um conhecimento que se propõe compreender o funcionamento e a articulação dos múltiplos sistemas naturais que regem o clima do planeta não poderia ser outra coisa se não complexo.
Pretendo, no entanto, chamar a atenção para um fato trivial, que costuma passar despercebido: existe uma distância abissal entre a dificuldade para fazer avançar esse conhecimento e a dificuldade para compreender o que ele diz.
E a dificuldade para compreender o que ele diz pode ser superada sem que tenhamos que percorrer um longo processo de formação estrita na área ou que tenhamos habilidades excepcionais em matemática, física, química ou programação.
Basta interesse, disciplina, materiais adequados e, eventualmente, a ajuda de quem já saiba um pouco mais. Ao longo dos meus textos no Holofote, vou procurar contribuir de alguma forma para os dois últimos “requisitos”.
O objetivo é que em pouco tempo, qualquer leitor(a) estará em condições de entender, de maneira simples e esquemática, porém rigorosa, os principais vetores do aquecimento global, as mudanças climáticas que ele tende a disparar, a dinâmica de crise dessas mudanças, o que nós teríamos que fazer para reverter as tendências destrutivas, o que nós teríamos que fazer para nos adaptarmos a impactos já inevitáveis e, por fim, o que nós temos feito.
Esse entendimento precisa, ainda, ser combinado, conforme já adiantei, a um entendimento mais profundo das raízes sociais do problema. Dizer que o principal vetor das mudanças climáticas é a humanidade e não levar essas raízes sociais em conta é, a despeito de toda complexidade e sofisticação da ciência e dos(as) cientistas do clima, de uma vulgaridade científica que beira o inacreditável.
Sem entrar em debates muito profundos sobre filosofia da ciência, podemos simplesmente perceber três coisas.
Primeiro, o conjunto de transformações climáticas que tomamos por objeto apresenta uma dinâmica que só pode ser adequadamente compreendida se tivermos um entendimento suficiente a respeito do funcionamento dos principais sistemas naturais do planeta. É, portanto, perfeitamente compreensível que cientistas da natureza estejam nas linhas de frente desse esforço científico.
Segundo, uma das conclusões que emerge e se consolida a partir desse esforço é que, embora o sistema climático do planeta tenha uma história povoada de transformações, as transformações mais recentes são predominantemente impulsionadas pelos impactos das atividades humanas. Daí que termos como antropogênico e antropoceno tenham ganhado um espaço definitivo no discurso científico.
Terceiro, a humanidade não existe no éter, à parte da realidade, como uma geleia homogênea e sem história. A humanidade sempre existe, reproduz-se e intervém no mundo estando organizada em sociedade(s). Sendo assim, a dinâmica própria da sociedade, que condiciona o tipo de interação que a humanidade trava com a natureza, é parte integral do objeto que chamamos de mudanças climáticas e não pode ser trazido à discussão apenas como uma espécie de afterthought.
O déficit de teoria social que marca as intervenções de cientistas do clima no debate público completa um quadro que debilita até mesmo nossa capacidade de compreender as características e a magnitude dos desafios que nos defrontam.
De um lado, transformações naturais socialmente determinadas (portanto, um objeto de investigação incontornavelmente natural e social). De outro, cientistas da natureza que entendem pouco (ou nada) de teoria social e cientistas sociais que entendem apenas superficialmente os mecanismos naturais que não podem mais ser ignorados ao pensar as sociedades.
Evidentemente, não proponho que qualquer teoria social tenha a mesma capacidade de cumprir adequadamente o papel de cobrir essa lacuna. Se é uma dinâmica social específica que determina padrões destrutivos específicos, apenas uma teoria social capaz de oferecer uma compreensão dessa dinâmica e de sua relação com tais padrões pode cumprir esse papel.
Nesse sentido, o marxismo encontra-se em posição privilegiada. Essa tradição de crítica ao capitalismo, justamente por não ter como horizonte a simples gestão das mazelas desta sociedade, é particularmente apta a demonstrar as inviabilidades do sistema. E no que tange às mudanças climáticas, é cientificamente decisiva a capacidade de demonstrar as inviabilidades ecológicas do capitalismo.
Note, praticamente tudo aquilo que já sabemos ser necessário fazer é simplesmente incompatível com a reprodução da lógica do capital. A ciência nos diz que precisamos contrair a escala do nosso impacto ecológico, o que exige a contração (e, eventualmente, eliminação) de incontáveis atividades.
Mas o capital não pode tolerar esse tipo de recuo, em nenhuma instância! A ciência nos diz que as melhores tecnologias precisariam ser utilizadas para moderar, no máximo de seu potencial, nossa demanda material sobre o planeta.
Mas o capital não pode deixar de reverter esse potencial em mais expansão compulsiva da produção! A ciência nos diz que nossos padrões de consumo deveriam ser alterados drasticamente, em escala e escopo.
Mas o capital, embora possa tolerar essas reconfigurações de consumo em âmbito local e restrito, precisa garantir que, em âmbito global, o consumo seja também persistentemente expansivo.
Este espaço a serviço da formação, que estreio hoje no Holofote, procurará trazer demonstrações teóricas desses e muitos outros pontos de maneira acessível ao público leigo.
O objetivo é que a crítica ecológica do capitalismo seja entendida como aquilo que ela realmente é, i.e., como parte integrante (e fundamental) da ciência social do clima e como arma teórica não apenas para a emancipação humana, mas também para a preservação das condições materiais de vida no planeta.
Eduardo Sá Barreto é professor da UFF (Universidade Federal Fluminense), pesquisador do Niep-Marx (Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e Marxismo) e autor do livro O capital na estufa: para a crítica da economia das mudanças climáticas