Dia Mundial da Água alerta para risco que bem essencial à humanidade corre no capitalismo
22 de março de 2022 - 13h32
Água: um bem descartável?
Por Dermeval Saviani
Neste dia 22 de março estamos comemorando o Dia Mundial da Água, instituído pela Assembleia Geral da Nações Unidas em 21 de fevereiro de 1993.
Diante desse fato me vem à mente a trajetória de Tales de Mileto, que viveu no século VI a.C., na Jônia, colônia grega situada na Ásia Menor, defronte ao Mar Egeu.
Tales, considerado o primeiro filósofo, integra os chamados pré-socráticos, um conjunto de pensadores que, pela primeira vez, procuravam compreender a realidade a partir da observação dos fenômenos naturais, servindo-se, portanto, da cosmologia e afastando as interpretações míticas.
É nesse contexto de uma cidade como Mileto, metrópole com intensa atividade comercial, a mais próspera do mundo grego, em torno da qual girava grande número de colônias gregas.
Uma característica desses primeiros filósofos era a tentativa de transformar o caos em cosmos, buscando um princípio explicativo unificador de todos os elementos da natureza, construindo, assim, a compreensão do Universo.
E para Tales, um sábio que dominava conhecimentos de geometria, agrimensura e astronomia, o elemento que se constituía como princípio unificador de todos os fenômenos naturais do Universo era a água. A água se punha, pois, como a origem de tudo o que se podia observar no mundo natural.
Tendo em vista o interesse de Tales pela observação dos astros (ele foi o primeiro a prever um eclipse solar no ano de 585 a.C.), foi acusado de falta de senso prático.
Com efeito, podemos ver como vários compêndios de história da filosofia respaldam essa crítica, ao relatar um fato, de certo modo pitoresco, segundo o qual sua criada se riu dele, ao vê-lo cair num buraco porque, absorto na observação dos astros, não viu o chão onde pisava.
No entanto, essa é uma versão totalmente infundada, pois o próprio Tales confundiu seus críticos contemporâneos se enriquecendo com o comércio de azeite. Vejamos então, como, nesse âmbito, situa-se a identificação da água como estando na origem de todos os fenômenos do Universo.
A Grécia situa-se geograficamente como um país voltado para o Mar Egeu, espremido entre a montanha e o mar. Nessas condições, o comércio transcorria por meio da circulação dos navios pelas várias colônias, que se distribuíam pelas costas marítimas.
Era a água, portanto, o meio que permitia aos navios chegarem aos diversos pontos comerciais. E era pela observação dos astros que ele se orientava na navegação, para chegar com o azeite aos vários destinos de sua mercadoria.
Vê-se, assim, que ao contrário da acusação da falta de senso prático, esses primeiros filósofos, com destaque para Tales, conforme nos informa o historiador britânico Benjamin Farrington, na obra A ciência Grega, “não eram reclusos, empenhados em elucubrar problemas abstratos, não eram ‘contempladores da natureza’, no sentido acadêmico, mas homens práticos, ativos”.
E Farrington prossegue, acrescentando: “a novidade da sua filosofia residia no fato de que, ao analisar a razão das coisas, o faziam à luz da experiência cotidiana, sem consideração pelos antigos mitos” (FARRINGTON, B. A ciência grega. São Paulo, Ibrasa,1961, p. 27).
Evoco esse testemunho do primeiro filósofo para observar que a água, se não é o princípio de tudo o que existe, é de fato, o princípio de toda vida possível, sem o qual nenhum ser vivo, seja do reino animal ou vegetal poderá sobreviver.
É ela que garante a sobrevivência de todos os ecossistemas do mundo. E, no entanto, na época moderna, os seres humanos vêm convertendo esse bem, sem o qual nenhuma forma de vida é possível, em algo inteiramente descartável, seja pelo desperdício, que o torna cada vez mais escasso, seja pela poluição incontrolável, que o torna inutilizável para exercer seu papel de manutenção de todas as formas de vida que se desenvolveram em nosso planeta.
Eis a razão que levou a ONU, faz já quase 30 anos, a nos alertar para esse alto risco destrutivo com a instituição do Dia Mundial da Água.
No entanto, parece que a maior parte da humanidade, submetida a esse sistema econômico que busca converter tudo, inclusive a própria água, em meio de maximização dos lucros, vem fazendo ouvidos moucos ao alerta representado pela decisão da Assembleia Geral da ONU.
Dessa forma, os rios estão sendo poluídos; as minas d’água soterradas ou apropriadas privadamente, para satisfazer o insaciável apetite de lucro dos empresários capitalistas; os lençóis freáticos estão se esgotando pela abertura indiscriminada de poços artesianos, ameaçando nossos ricos aquíferos e a destruição da vegetação ciliar vem degradando nossos cursos d’água.
É, pois, da maior importância, que ouçamos os clamores dos povos originários, dos defensores da ecologia, dos operadores da agricultura orgânica, enfatizando o alto valor não apenas ecológico, mas social, econômico, político e humanitário concentrado neste precioso líquido que a natureza nos ofertou.
Aproveitemos, então, a comemoração do Dia Mundial da Água para disseminarmos a consciência da necessidade imperiosa da preservação desse bem de natureza difusa que, segundo o artigo 225 de nossa Constituição, é um “bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
Dermeval Saviani é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), pesquisador emérito do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e doutor Honoris Causa pelas Universidades Tiradentes de Sergipe, Federal da Paraíba e Federal de Santa Maria.