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MUNDO ISLÂMICO

Professora da USP contesta visão que associa mulher muçulmana à opressão

28 de novembro de 2022 - 23h11

Mulheres muçulmanas – entre a religião e o machismo estrutural

 

Por Francirosy Campos Barbosa

Ser mulher e muçulmana nesta sociedade é ser questionada o tempo todo sobre opressão, práticas religiosas e suas vestimentas. O véu sempre atrelado à violência, opressão, mesmo quando o sentido desse é devoção a Deus, e não obrigação em relação aos homens. Os versículos revelados ao Profeta Muhammad marcam essa devoção, a modéstia e o respeito que homens devem ter em relação às mulheres.

Ó profeta! Diz a tuas filhas e às mulheres dos crentes que (quando saírem) se cubram com suas ‘jalabib’, isto é mais conveniente para que se distingam das demais mulheres e não sejam molestadas, porque Deus é Indulgente e Misericordioso (ALCORÃO, surata 33, versículo 59)

“E se pedirem às mulheres do profeta qualquer objeto, peçam-no através de uma cortina. E isso será mais puro para os vossos corações e para os dele(s)”. (33:53)

Este segundo versículo foi revelado na noite de núpcias do Profeta Muhammad com Zenaib, pois os convidados demoravam em deixar a casa do Profeta, este proferiu o versículo 53 da surata 33 enviado por Deus. A palavra hijab usada no versículos apresenta três dimensões: a primeira é visual, ocultar algo da visão. A origem do verbo árabe hajaba é a mesma que a do verbo to hide (ocultar). A segunda dimensão é espacial, para separar, marcar a diferença, definir a entrada, o acesso. A terceira dimensão refere-se à ética, à moral, diz respeito ao campo do proibido, e completa sua análise dizendo que o véu determina uma fronteira de proteção. Podemos pensar o véu como fronteira simbólica que separa o que deve e o que não deve ser visto (MERNISSI, 2003).

Hijab não é o lenço na cabeça (popularizou-se chamar assim no Ocidente), mas toda a vestimenta da cabeça aos pés, é um código de conduta, que para os muçulmanos enobrece suas fiéis. Para muitas significa liberdade, identidade e um ato político de resistência contra o colonialismo. Muçulmanas sempre têm interpretações diversas para o seu uso.

No entanto, no Ocidente o uso do véu é visto como opressão, ausência de liberdade, isto porque, há também muitas mulheres muçulmanas que não desejam usá-lo, essas se sentem oprimidas pela obrigação de fazer algo para qual não estão preparadas, ou não conseguem ver o sentido para isso. São interpretações diversas, no entanto, qualquer tipo de opressão neste sentido é desaprovado pela maioria dos muçulmanos.

Se o véu é obediência a Deus sendo a relação entre ela e Ele, cabe a mulher o melhor momento para passar a usá-lo. Para os sábios, não usar o véu é compreendido como pecado, assim como, o consumo de álcool, carne de porco etc. Em países regidos pela Sharia o uso do hijab passa a ser obrigatório, pois acreditasse que é necessário ser modelo para outras comunidades e que se deve seguir à risca a religão, mas os homens seguem sendo falhos, e muitos erros acontecem, desrespeitando inclusive os direitos das mulheres.

Quando nos remetemos aos Direitos Humanos e mulheres muçulmanas é preciso dizer em primeiro lugar que no Islam são os homens que se “esquecem” dos direitos das mulheres que estão presentes nos fundamentos da religião. São direitos das mulheres, o divórcio, a herança, o voto, o prazer sexual, estudar, escolher seu marido etc. Em segundo lugar, precisamos perguntar às mulheres se elas estão confortáveis ou não com as leis impostas (religiosas), se sentem que essas as protegem ou não. O nosso olhar ocidental não pode ser termômetro para todas as coisas, porque nossa concepção de liberdade pode ser muito diferente das comunidades islâmicas árabes, africanas, asiáticas etc.

Nas primeiras páginas do livro de Lila Abu-Lughod “Veiled Sentiments” lemos seu relato contando que seu pai, mesmo morando nos Estados Unidos, disse que a acompanharia para realizar pesquisa de campo junto ao grupo beduíno do Egito. Segundo a autora, uma mulher solteira não se apresenta sozinha em um grupo, precisa demonstrar que pertence a uma família. Ela, uma antropóloga adulta, foi apresentada pelo seu pai ao grupo e usou isso como reflexão para compreender aquela sociedade que estava adentrando.

Ela filha de Lughod, tinha um nome, uma família e isso tem muito significado para quem se pensa em grupo. Isso é muito comum, e não desrespeito. As famílias não se pensam como indivíduos isolados, o problema de um é problema de todos, onde todos tentam resolver, ajudar. É claro que isso pode gerar outros conflitos, mas não é a sociedade da individualidade, e sim do coletivo. O Islam não permite sexo fora do casamento, por isso, pessoas casam bem jovens, os xiitas, por exemplo, tem o casamento temporário, para essa situação, quando os jovens não podem se manter economicamente, eles fazem um casamento com tempo determinado, até que possam morar juntos e renovar o contrato de casamento. Nesse período, pode ter relações sexuais. É um casamento. Os sunitas não permitem esse tipo de casamento.

Então, se só se aprova sexo no casamento, logo todo o resto é regulado pelo Estado, como acontece no Qatar em relação a saúde da mulher, tendo algumas restrições se ela não for uma mulher casada. Isso não significa que elas não tenham assistência médica, pois isso, não seria islâmico. O atendimento à saúde é direito de qualquer mulher, inclusive mulheres podem ser atendidas por médicos. Dizer que é uma sociedade patriarcal, é não conhecer a força que as mulheres têm internamente, inclusive nas escolhas dos cônjuges dos filhos, no respeito que a mãe muçulmana tem por parte de seus filhos, que é muito maior que qualquer pai possa sonhar chegar.

Um filho não casa com uma mulher que a mãe não deseja (dá para escrever uma tese sobre isso). Se ele se casa fora do grupo sempre será uma questão, não se espera que uma libanesa case com um palestino. Mas isso é da cultura, e não é regra da religião, como muitas outras atitudes que não são encontradas nas fontes escriturárias. É muito comum o senso comum considerar que falar de um muçulmano é falar de todos, como se a religião fosse um monobloco. Não é, é preciso considerar as várias nuances culturais que permeiam o modo de viver e praticar a religião.

A escritora Asma Barlas diz em um dos seus livros, algo que concordamos. Deus no Islam não é PAI (Ele é Criador e nada pode ser associado a Ele, premissa básica islâmica), portanto, a ideia de patriarcado não deveria nem ser mencionado. O que acontece são leituras literalistas e machismo mesmo, de uma sociedade que ainda tem controle total e absoluto nas mãos dos homens, mas não significa ausência da força das mulheres e persuasão dessas. Há muitos homens inclusive, que não sabem que uma mulher pode administrar uma mesquita, mussala, porque fazem leituras ao seu bel prazer.

Os direitos das mulheres existem, o que acontece em muitas situações é ação de homens completamente desrespeitosos com o que foi determinado pelas fontes escriturárias (Alcorão, sunnah e ijma).

Infelizmente os homens estão longe do modelo do Profeta Muhammad, que era generoso com suas esposas e filhas. A família é a base da comunidade islâmica, se um membro desequilibra todo o casamento será oneroso, e em geral e principalmente às mulheres. A dificuldade que essas encontram em conseguir um divórcio mesmo sendo permitido pela religião é um verdadeiro périplo, um empurra-empurra, que na maioria das vezes as mulheres saem prejudicadas. Erro das jurisprudências do divórcio? Não, erro de quem evita ao máximo que ele aconteça, porque é a coisa lícita menos desejável da religião.

Por fim, importante dizer que nem todo movimento feminista contempla essas mulheres. Leiam por exemplo a antropóloga Saba Mahmood, em artigo da Revista Etnográfica. Não, os desafios feministas não têm dimensões globais, porque o que desejam as mulheres catares e outras muçulmanas, não necessariamente é o que desejamos. Precisamos parar de achar que as demandas e as agências são as mesmas. Não são! A luta contra a violência de gênero também tem sido luta de mulheres muçulmanas, só ver o papel exercido pela RAWA (Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão), naquele país, das mulheres na Palestina, no Irã, entre outras…

Para ler sobre a Copa do Qatar.

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Francirosy Campos Barbosa é antropóloga, docente no Departamento de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo) no campus de Ribeirão Preto, pós-doutora pela Universidade de Oxford, na Inglaterra, coordenadora do Gracias (Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes), autora entre outros livros de Hajja, Hajja – a experiência de peregrinar e  diretora do documentário, Allah, Oxalá na trilha Malê, entre outros. E-mail: franci@ffclrp.usp.br


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