Mulheres são maioria entre desempregados, aponta Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
17 de março de 2022 - 10h47
Uma mulher sente a dor de todas!
Por Michele Schultz Ramos
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), divulgada no último dia 24, apontou 11,1% de taxa de desocupação no quarto trimestre de 2021. Quando estratificados por sexo, os dados mostram que esse percentual é maior entre as mulheres, atingindo 13,9% contra 9% entre os homens.
A diferença da taxa de desocupação entre homens e mulheres é similar à do quarto trimestre de 2019, antes da pandemia. No entanto, quando considerados os dados de informalidade, vemos que as mulheres têm menos acesso a direitos e são mais exploradas.
A população brasileira é formada por maioria de mulheres, com 50,8% e, ao considerarmos a força de trabalho, as mulheres representam 51,66%, entre ocupadas e desocupadas. Apesar de serem maioria, as mulheres brasileiras na força de trabalho ganham em média 77% do salário dos homens.
Portanto, mulheres têm maior taxa de desemprego, ganham menos e trabalham mais, resultado da lógica patriarcal e machista que ainda rege diferentes sociedades e culturas ao redor do mundo.
O cuidado durante a pandemia de Covid-19 foi e é praticado por mulheres, na grande maioria dos casos. A cultura do cuidado faz com que mulheres fiquem mais sobrecarregadas, porque têm de somar trabalho remunerado, formal ou informal, ao trabalho não remunerado, doméstico, que é essencial para o cuidado das pessoas. Lavar, cozinhar, organizar, cuidar de filha(o)s, pais, mães, parentes, doentes ou não, são aspectos do cotidiano das mulheres.
E, durante a pandemia, outros elementos do cuidar foram introduzidos nas suas rotinas. As mulheres passaram a cuidar das angústias, dos medos, das incertezas, da fome, do desemprego e do desamparo. O cuidar se ampliou e, na periferia, trouxe algumas preocupações que merecem ser destacadas.
No início da pandemia, com o necessário fechamento de vários setores e a manutenção quase que exclusiva dos trabalhos essenciais para conter o avanço do vírus, muitas mulheres, que são maioria na informalidade, foram as primeiras a se verem desempregadas.
Ao mesmo tempo, elas tiveram de lidar, quase instantaneamente, com novos problemas, entre eles, o medo do vírus e da doença da qual, naquele momento, sabia-se muito pouco.
As chamadas comorbidades, nome desconhecido por muitas pessoas para condições há muito conhecidas nas periferias, tornaram-se elementos de grande apreensão. Diabetes, pressão alta e obesidade, comuns nas periferias, que detém maiores índices de prevalência e incidência dessas condições, tornaram-se objetos de maior preocupação.
Além disso, muitas mulheres já eram responsáveis pelo cuidado de pessoas velhas e a pandemia elevou o nível de atenção, por serem estas as mais vulneráveis ao adoecimento e à morte por Covid-19.
Ao mesmo tempo, famílias inteiras tiveram de encarar o desemprego, e o resultado foi que muitas delas passaram a depender exatamente das pessoas velhas, ou melhor, de suas aposentadorias.
Muitas pessoas, de diferentes núcleos da mesma família, tiveram de passar a viver sob o mesmo teto para conter despesas com mais de um domicílio. E essa necessidade trouxe consigo aspectos que fizeram aumentar velhos e graves problemas de convivência.
O retorno à casa de avós, avôs, pais, mães, tios ou tias fez piorar o enfrentamento da Covid-19 por induzir a uma convivência carregada de problemas: muitas pessoas sob o mesmo teto, tendo de enfrentar escassez de recursos, fome, desnutrição e, muitas vezes, violência.
A convivência forçada pela pandemia fez aflorar violências muito comuns nas famílias. Segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, embora o número de feminicídios e estupros tenha caído em 2020 e 2021 em relação à 2019 , o que pode ter relação com redução de acesso aos dispositivos de denúncia por causa do isolamento social, o total de casos é ainda assustador.
Entre março de 2020 e dezembro de 2021 ocorreram 2541 feminicídios e mais de 100 mil casos de estupro de meninas e mulheres, inclusive vulneráveis. Isso significa dizer que uma menina ou mulher ou foi estuprada a cada 10 minutos ou assassinada a cada 7 horas.
Crianças e adolescentes, que ficaram fora das escolas, aumentaram o tempo em que permaneceram nas ruas. Com a ociosidade e a falta de perspectiva rondando seus cotidianos, muita(o)s buscaram apaziguar suas angústias fazendo uso de álcool e drogas. A drogadição entre jovens aumentou na pandemia e esse é um aspecto ainda pouco explorado.
As mulheres da periferia resguardam as pessoas com excesso de trabalho, sem salários e submetidas à violência. Ainda assim, não abandonaram a perspectiva do cuidado, aliás, ampliaram-na provando, mais uma vez, que somos guardiãs das pessoas, sejam parentes ou não.
As redes de apoio e convivência criadas nas comunidades, principalmente por lideranças femininas, foram absolutamente essenciais para garantir a vida das pessoas. Além da exploração sofrida pelas mulheres, elas passaram a assumir papéis que deveriam ser do Estado e de seus governos.
Uma mulher sente (ou deveria sentir) a dor de todas! E isso caracteriza a cultura do cuidado que está alinhada com uma perspectiva solidária de convivência. As mulheres não salvarão o mundo! Elas já o salvam há muito tempo!
Michele Schultz Ramos é professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP (Universidade de São Paulo) e presidenta da Adusp (Associação de Docentes da USP)