Mortes em abordagens e operações policiais ou pelas chuvas não podem ser naturalizadas, afirma juíz
31 de maio de 2022 - 18h50
Compreender para desnaturalizar as tragédias brasileiras
Por André Augusto Salvador Bezerra
A relativamente recente e ainda frágil democracia brasileira vive uma situação contraditória. De um lado, o país nunca teve uma Constituição estabelecedora de tantas garantias a liberdades individuais frente à atividade repressiva do Estado. De outro lado, continuam frequentes os casos de violência contra indivíduos por parte de representantes dos órgãos de repressão do Estado.
Nos últimos dias, uma chuva de tragédias provocadas a partir de ações de agentes da polícia inundou o noticiário. Primeiro, veio a notícia da morte de quase 30 pessoas em uma operação policial na Vila Cruzeiro, Rio de Janeiro.
Logo em seguida, surgiu a notícia de abordagem realizada por policiais federais rodoviários do litoral de Sergipe que, colocando o abordado em local parecido com uma câmara de gás, levou-o à morte.
Tais casos parecem simbolizar, de modo contundente, a insuficiência de uma Constituição democrática para cessar práticas que remontam a um passado colonial, como o é o brasileiro, que naturaliza a prevalência de hierarquias e silenciamentos em favor do homem branco de origem europeia.
Sob esse contexto, tudo parece fazer parte de uma ordem natural de coisas. É como se determinados estratos populacionais fossem fadados a sofrer repressão, tais como eram vistos, pelos colonizadores, as populações originárias que viviam no território colonizado e as populações africanas trazidas à força para serem escravizadas, todas cruelmente tidas como “naturalmente inferiores”.
Hoje, são as populações periféricas que ocupam esse lugar, não coincidentemente formadas em grande parte por descendentes de escravizados, sujeitas, como se “por obra da natureza”, aos arbítrios do Estado comandado, também não coincidentemente, pelos descendentes dos exploradores europeus.
Como superar a naturalização da opressão? É patente que não há uma única resposta para problema tão complexo. Mas há certo consenso de que um sistema educação que motive práticas participativas e questione velhas hierarquias e silenciamentos configura um passo fundamental para isso.
Quando se fala em educação, é comum se pensar primordialmente nos processos de aprendizagem infantil. Estes, de fato, são fundamentais, mas não bastam. É preciso ainda se pensar em um melhor treinamento de profissionais já graduados, inclusive os chamados operadores do Direito a quem cabe fazer cumprir a Constituição democrática, tais como advogada(o)s, membros do Ministério Público, delegado(a)s de polícia e juíze(a)s.
Para fechar, faz-se uma observação. Este texto foi elaborado em meio a uma outra tragédia, a de dezenas de mortos em localidades periféricas de Pernambuco, após alguns dias de chuva (que também atingiu bairros de elite, com a diferença de não ter eliminado vidas).
O que há de comum entre as mortes da chuva pernambucana e as chuvas de dramas que inundaram o noticiário, a partir de ações policiais, mencionadas acima? Em ambos, os acontecimentos não são obras da natureza, mas produtos de um persistente projeto político de índole colonial, baseado na exploração sobre setores populacionais.
Não há acidentes, mas, quando muito, incidentes que escancaram dramas diários de populações das periferias. Isso há de ser compreendido. O conhecimento é o maior adversário da naturalização da tragédia.
André Augusto Salvador Bezerra é juiz de direito, professor, mestre, doutor, pesquisador em estágio pós-doutoral na USP (Universidade de São Paulo) e escreve mensalmente no Holofote.