Lawfare é arma da guerra híbrida contra inimigos políticos e governos progressistas
14 de abril de 2022 - 10h10
Lawfare
Por Henrique Pizzolato
A jovem democracia brasileira foi muitas vezes interrompida por ditaduras. A última perdurou duas décadas, suspendeu um ciclo de desenvolvimento, prendeu, torturou e matou cidadãos brasileiros.
O registro de parte dessa história integrou o projeto Brasil Nunca Mais, organizado por líderes religiosos.
Mas a democracia voltou a ser atacada em 2005, após a vitória do primeiro presidente oriundo da classe trabalhadora, desta vez pelo lawfare: o uso do sistema judicial para perseguir inimigos políticos, pelo espetáculo midiático, com o escopo de destruir a imagem, a reputação e a honra dos inimigos de classe e, principalmente, o projeto político escolhido pelo povo nas urnas.
O lawfare passa a ser uma das principais armas, senão a principal, no contexto de uma guerra híbrida; termo que se convencionou utilizar para definir uma guerra onde são usadas armas além das convencionais (empregadas pelo Exército, pela Aeronáutica e Marinha).
Utilizam-se estruturas internas do próprio país atacado, como aliadas contra o país. No caso específico, o sistema judiciário e grande parte dos meios de comunicação social.
O uso do sistema judicial para esse fim específico, o chamado lawfare (ou direito penal do inimigo), é relativamente recente e tem se mostrado, se não mais devastador que a guerra aberta, muito mais eficiente quanto aos propósitos. Essa é uma luta realizada no escuro da espionagem, portanto suja.
Às vezes o objetivo desse tipo de guerra é tão somente o enfraquecimento do governo de turno (sempre progressistas e comprometidos com projetos de soberania) por meio de instabilidade política, como, por exemplo, o processo conhecido por Mensalão, do qual fui alvo e no qual as maiores iniquidades contra mim, contra alguns companheiros e contra o país foram cometidas à sorrelfa pelo judiciário nacional.
Claro está que neste processo muitas empresas também foram vitimadas, mas atacá-las não parece ter sido a causa primeira.
O uso dessa arma, o lawfare, no contexto da guerra híbrida, tem por objetivo solapar a soberania, expropriar riquezas, aniquilar direitos sociais e enfraquecer uma nação a fim de submetê-la aos interesses econômicos, sobretudo, externos.
Para as pessoas que são alvos do lawfare, não há garantias aos direitos fundamentais da pessoa humana, não há julgamentos justos, juiz natural e imparcial, não há ampla defesa e direito ao contraditório. O que existe é a condenação midiática, os julgamentos de exceção.
O primeiro governo do presidente Lula sofreu um ataque por meio da Ação Penal 470, conhecida por Mensalão.
O Supremo Tribunal Federal, usurpando o direito constitucional, ao juízo natural, julgou e condenou cidadãos comuns, em última e única instância, que não puderam usufruir do duplo grau de jurisdição.
Foram condenados sem direito a nenhum recurso, desconsiderando, não analisando e até escondendo as provas de inocência, condenados sem qualquer prova de culpa.
Nos anos seguintes, ocorreram novos casos com repercussão política e impacto nos programas e políticas de inclusão social, gerando consequências danosas para o povo brasileiro e, no âmbito pessoal, para as vítimas e seus familiares, alvos de perseguições implacáveis e processos absurdos.
No passado, a tortura física, realizada dentro dos porões, era o método usado para eliminar inimigos ideológicos. Atualmente, o propósito é o mesmo, mas o método para torturar tornou-se mais sutil e sofisticado.
As vítimas do lawfare são expostas publicamente pela mídia e pelo judiciário; são apresentadas como inimigas da sociedade para serem banidas e excluídas do convívio social, para sempre. Quem são as vítimas do lawfare no Brasil?
No Mentirão-Mensalão (AP 470) e na Operação Lava Jato – entre outras operações com nomes pomposos e/ou esdrúxulos que se dissolveram na memória popular, mas que passaram a ser a coqueluche da mídia corporativa e dos caçadores de fama fácil e heróis de pés de barro – o aparelho policial e o judiciário abandonaram completamente sua missão institucional e se transformaram em ferramenta, em joguete, nas mãos do poder econômico, desrespeitando as regras mais primárias de direito e garantias individuais, de qualquer conceito de humanismo, e a própria soberania nacional, para prestar serviços aos que pretendem acumular capital a qualquer custo.
O servilismo dos aparelhos policial e judiciário, que sequer poderiam ser chamados de aparelhos de segurança, tem se dado em troca de fama fácil e eventualmente vantagem financeira. Seus agentes não têm tido qualquer pejo em assumirem o papel de pistoleiros de aluguel dos poderosos, e submeterem a soberania nacional enquanto esmagam os cidadãos idealistas.
O resultado disso é a queda da democracia para um fosso de autoritarismo, fascismo, nazismo e de todas as formas de desrespeito: um retrocesso sem par na própria cidadania. Importa questionarmos o porquê de a humanidade se permitir chegar a esse ponto.
Essa disfunção do sistema de segurança e justiça, o servilismo a esse aparato acumulador, está gerando uma crise civilizatória de monta no nosso país. Urge colocar as ferramentas e as instituições do país no seu devido lugar, submetendo-as a um controle popular rígido, sob pena de vermos diluir, a mal de todos, o próprio país.
Quando falamos das pessoas e das famílias que foram vítimas de ações de lawfare, somos forçados a nos debruçar sobre situações que exigem ações de correção e de reparação imediata.
À memória nos retorna ao débito injustificável de nosso país com os escravizados durante mais de 300 anos e que se tenta esconder sem nenhuma reparação até hoje; o débito com os familiares e as vítimas de torturas da ditadura militar que foi camuflado e se tenta esconder até hoje. Esse também será o destino dos familiares e vítimas do lawfare? Iremos, uma vez mais, camuflar e apostar no esquecimento dos atos de injustiça e dos injustiçados?
Quais as consequências da perseguição judicial? Que reparação se faz necessária a fim de corrigir os erros e devolver aos injustiçados seus plenos direitos?
Tais perguntas precisam de respostas que resultem em soluções a fim de impedir que o Judiciário continue a ser usado como arma de guerra política.
“O lawfare, além de colocar em sério risco a democracia dos países, é geralmente usado para minar processos políticos emergentes e tende a violar sistematicamente os direitos sociais. A fim de garantir a qualidade institucional dos Estados, é essencial detectar e neutralizar esse tipo de práticas que resultam de uma atividade judicial imprópria combinada com operações multimidiáticas paralelas”, ressaltou o Papa Francisco.
Henrique Pizzolato é ex-diretor do Banco do Brasil.