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FILÓSOFA

Simone de Beauvoir estudou dois anos de história e cultura chinesas para escrever A Longa Marcha

A filósofa francesa Simone Beauvoir durante sua visita à China em 1955

28 de março de 2022 - 00h15

A Longa Marcha: o livro de Simone de Beauvoir sobre a China

 

Por Carlos Alberto Shimote Martins

Em setembro e outubro de 1955, convidados por Zhou Enlai e pelo governo chinês, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir fizeram uma viagem à China. Permaneceram um mês em Pequim e, no segundo mês, viajaram em trem pelo país: visitaram as cidades de Xangai, Hangzhou (no sudeste do país) e Guangzhou (no sul da China, nas proximidades de Hong Kong e Macau).

Quando voltou à Paris, impactada pela viagem, Simone de Beauvoir decidiu escrever um livro. Durante dois anos estudou a história e a cultura da China para escrever La Longue Marche (A Longa Marcha), livro publicado na França em 1957.

Quando lemos A Longa Marcha estamos diante de um espírito superior: uma rara conjunção de sensibilidade e inteligência.

O livro de Beauvoir possui o inegável mérito de registrar os efeitos mais imediatos da Revolução Comunista de 1949, quase no calor da hora; mas o maior mérito do livro de Simone de Beauvoir é, sem dúvida, o seu compromisso com a verdade e com a sinceridade.

E não é, portanto, sem justa razão que Simone de Beauvoir, ao se aperceber de certo dirigismo na literatura chinesa da época, evoca sua conterrânea de mesmo nome (Simone Weil) para, desta forma, também expor a sua profissão de fé intelectual e combater o espírito de propaganda ideológica que reinava no lumiar daqueles tempos de Guerra Fria:

“O que dissemos a propósito da imprensa vale também para a literatura: uma vez que se trata de instruir as massas analfabetas, certo dirigismo se impõe. Simone Weil, que não é suspeita de simpatizar com regimes autoritários, pedia que se conduzissem aos tribunais os autores que mentem ao público; ela achava, com razão, que uma mistificação intelectual é coisa tão grave quanto a falsificação de um remédio ou uma ponte mal construída.”

O livro de Simone de Beauvoir é, deste modo, uma obra que não faz concessões ao espírito da Guerra Fria do seu tempo. É escrito com aquele mesmo espírito que possuem os livros que André Gide escreveu sobre suas viagens à ex-União Soviética e ao Congo Belga: prevalecem a sinceridade e o compromisso com a verdade. Nada de dirigismo ou de submissão do intelecto à ideologia

E, ainda que haja algumas inevitáveis esperanças ingênuas de quem testemunhava os primeiros anos da Revolução Comunista na China (antes dos equívocos e de algumas consequências desastrosas das políticas públicas do Grande Salto Adiante e da Revolução Cultural, encampadas por Mao Zedong, como consequências dos conflitos e desentendimentos entres os dirigentes chineses e soviéticos, em torno do pacto sino-soviético), o que prevalece no livro de Simone de Beauvoir é a honestidade intelectual.

E, para nós leitores, para cada página que lemos do livro, há seguidas aulas de ética, política, história e cultura.

A principal lição ética que ensina o escrito de Beauvoir sobre a China é como não praticar o preconceito: o livro de Beauvoir possui inúmeras críticas à cultura e à política chinesas, mas nenhuma crítica é feita sem que haja uma precedente análise, uma minuciosa e criteriosa explicação do assunto, tema ou objeto criticado.

Evita-se desse modo não apenas o julgamento precipitado, mas sobretudo a crítica impressionista. A reflexão lenta, a análise criteriosa, a decidida busca da compreensão do outro, da cultura estrangeira, daquilo que é estranho, mas passível de ser conhecido e compreendido, é o que marca o livro de Simone de Beauvoir sobre a China. Decifrar o desconhecido, compreender e dialogar com o diferente.

Simone de Beauvoir não faz críticas a partir de suas impressões de viagem, mas, ao contrário, sua viagem à China fez com que ela durante dois anos estudasse a cultura e a história chinesas, para que pudesse, em primeiro lugar, avaliar se as suas impressões de viagem, eram justas de fato; e em segundo lugar, para que o justo e adequado conhecimento da história e da cultura chinesa pudesse fundamentar com propriedade suas objeções, censuras e avaliações críticas da China e do povo chinês.

Um livro que, por isso, não envelheceu. E o longo capítulo que Simone de Beauvoir escreveu sobre a cultura chinesa é das melhores coisas já escritas sobre o assunto, no mesmo nível de alguns dos escritos do maior de todos os sinólogos que já existiu, o professor de Cambridge, Joseph Needham.

Porém, ao contrário de Needham, que escrevia com o cálculo e a cabeça de um cientista, Simone de Beauvoir escreve como alguém cuja mente foi treinada para o pensamento filosófico e, por isso, sua análise sem concessões do confucionismo e do taoísmo, é um excelente exemplo de sensibilidade e argúcia crítica.

A Longa Marcha também se destaca pelo seu foco: em nenhum momento, Sartre, o companheiro de viagem de Beauvoir (e com quem ela certamente discutiu em profundidade muitas das coisas que testemunhou na viagem à China), aparece no livro, seja como personagem, seja como referência intelectual. E o mesmo ocorre com as autoridades e os dirigentes chineses da época de viagem.

O foco de Simone de Beauvoir é sempre a China, a sua cultura, o seu povo e a sua história. Um grande livro. Para quem viveu (ou vive) na China, expatriado ou não, para quem gosta ou se interessa por esse país ainda tão desconhecido no Brasil, vale a leitura.

Ainda que redigido nos anos 1950, muito antes, portanto, de todo o prodigioso desenvolvimento que a China alcançou no século 21, após a morte de Mao Zedong e as reformas que foram feitas sob a liderança de Deng Xiaoping a partir de 1989, o livro de Simone de Beauvoir, por se deter muito mais na análise antropológica e da cultura chinesa, tem aquilo que comumente é chamado de um estudo do ethos, ou seja, um estudo que revela a essência ou as características que fundamentam a identidade própria da China e do seu povo. E, por essa razão, permanece atual.

O fato a se lamentar é que o livro de Simone de Beauvoir encontra-se fora de catálogo. A edição brasileira, traduzida por Alcântara Silveira, e publicada pela editora Ibrasa de São Paulo, é de 1963. Depois disso, com o golpe militar de 1964 e a transformação do comunismo e dos países comunistas em permanente tabu, o livro de Simone de Beauvoir desapareceu e não foi mais reeditado no Brasil.

É possível, entretanto, encontrá-lo em sebos e alfarrábios. E, agora, nesses tempos, quando a China não apenas se tornou um país estratégico para o Brasil (é o maior parceiro comercial e o maior importador de produtos brasileiros), mas também uma potência de importância planetária, ler A Longa Marcha de Simone de Beauvoir é muito adequado.

Um dos trechos do livro de Beauvoir, que demonstra, a propósito, a atualidade da sua análise crítica, mostra um dos traços e uma das características da história chinesa. Isso porque Simone de Beauvoir explica, para nós ocidentais, marcados pela cultura eurocêntrica, algo que fundamenta (e diferencia) a China da maior parte dos países europeus: a presença fundamental do Estado (mais do que a iniciativa privada) nos negócios e na economia.

A presença estatal na economia chinesa não é como o senso comum tende a imaginar, algo recente, e que se tornou padrão com a Revolução Comunista de 1949 e com a implantação desde então dos planos quinquenais, mas algo que, em verdade, explica-se pela própria peculiaridade da China, isto é, pela permanência de uma estrutura feudal e de uma cultura predominantemente camponesa durante muitos séculos naquele país, e pela inexistência na China de uma burguesia autônoma nos mesmos moldes da Europa:

“O fato primordial da história da China é que esta não teve burguesia. As principais indústrias, o sal e o ferro, foram monopolizados pelo Estado dois séculos antes de J.C. Assim, enquanto, para combater o feudalismo os reis da França se apoiaram sobre as comunas e sobre os grandes burgueses, os imperadores da China, para desmantelar o seu, instituíram um exército de funcionários; eles foram a isto obrigados, devido à vastidão do território e ao caráter hidráulico da civilização chinesa; os grandes trabalhos necessários à retificação das estradas e à luta contra as inundações não podiam ser senão tarefas do Estado, exigindo um número considerável de administradores. Esta classe que encarnava concretamente a autoridade central, através do império, não permitiu que qualquer outro poder rivalizasse com o seu. Perseguiram-se os comerciantes: suas especulações eram tidas como furtos, seus filhos não tinham direito de passar nos exames que davam acesso ao mandarinato; eles foram mais ou menos deliberadamente esmagados sob encargos fiscais. Malgrado períodos de prosperidade – atestados, dentre outros por Marco Polo – eles não lograram constituir uma classe; a sua maior ambição era se tornarem proprietários de terras e compravam imóveis ao invés de criar um capitalismo. Em consequência, as trocas foram sempre raras, os centros comerciais pouco importantes; o artesanato só se desenvolveu na escala familiar e aldeã; cada grupo social – quinta, lugarejo, burgo, província – vivia autarquicamente. Os proprietários rurais, dentre os quais se recrutava a maioria dos mandarins, não possuíam interesses comuns e alguns deles chegavam a fomentar as secessões regionais; eles governavam de acordo com as ordens vindas do alto; não tinham influência direta sobre o desenvolvimento do país, razão pela qual este permanece estagnado: faltava-lhe esse fermento que foi, no Ocidente, o espírito de empreendimento burguês.”

 Na China, costuma-se dizer que todo chinês é taoista em sua intimidade, na sua vida interior e em seu modo de pensar e sentir; e que é confucionista na vida pública e no modo como se comporta na sociedade e se relaciona com os outros cidadãos e com as instituições de Estado; e que é budista na hora em que morre e quando cultua os seus antepassados.

A Cultura chinesa seria, portanto, um amálgama dessas três linhas e correntes do pensamento, e que jamais foram exterminadas, mesmo com as tentativas mais radicais, colocadas em prática pela Revolução Cultural dos anos 1960.

E, uma vez que a vida pública dos chineses é marcada pelo confucionismo, a presença do Estado na economia e nos negócios daquele país não ocorre indissociada da também forte presença do confucionismo na burocracia estatal.

A disciplina do chinês em face das autoridades, dos superiores e das instituições públicas, aquilo que muitas vezes para o estrangeiro se confunde com a obediência servil, ou com a resignação, não pode ser compreendida sem o entendimento  de Confúcio e do confucionismo. Sobre isso Simone de Beauvoir faz as seguintes observações:

“Eis por que Confúcio insiste tanto na necessidade de ‘nos observarmos quando estamos sós’. A interiorização só é realmente eficaz no momento em que a ordem resiste à prova da solidão: é nisto que constitui a ‘sinceridade’ que Confúcio exige do sábio com tanta insistência. Mas se ele inventou, na China, a ideia da ‘consciência moral’, o conteúdo que lhe deu não tem nada de novo: agir virtuosamente é sempre conformar-se às normas estabelecidas. O indivíduo, como em Kant, sacrificará sua ‘sensibilidade’ singular e se pautará segundo o modelo proposto pela razão moral: a pessoa humana ideal. A diferença está em que Kant, exprimindo a sociedade burguesa, concebe a pessoa de acordo com a universalidade, enquanto Confúcio a define segundo as hierarquias feudais. O homem honesto é aquele que se identifica exatamente com o seu ofício: soberano, administrador, pai, súdito, administrado, filho. Os caprichos dos príncipes, os apetites dos burocratas, o descontentamento, o desespero dos oprimidos, todos esses motivos subjetivos devem apagar-se diante do personagem social que cada qual julga ter que encarnar. É o mesmo que dizer que a verdade do homem, a fonte profunda da sua individualidade e de sua liberdade, é negada em proveito de um ‘superego’ de tipo padrão, que se impõe imperativamente a todos: o que alguns reacionários querem fazer-nos tomar por uma filosofia da liberdade não é, na realidade, senão um moralismo de burocrata.”

Penso que, por tudo isso, por tudo que foi explicado, pelos excertos destacados, estão justificadas as razões pelas quais a leitura de A Longa Marcha, de Simone de Beauvoir, ainda é uma leitura de grande proveito.

Aqueles que têm interesse, portanto, pela China e pelos chineses, devem ler o livro de Simone de Beauvoir, mesmo que tenham que recorrer aos alfarrábios, às bibliotecas públicas ou às edições ainda disponíveis na França.

 

Carlos Alberto Shimote Martins morou em Pequim durante três anos e meio. Foi professor de Português, Cultura Brasileira e Literatura Brasileira na Universidade de Estudos Internacionais de Pequim (Beijing International Studies University/Erwai), no período de maio de 2010 a agosto de 2013. Foi o leitor escolhido para atuar naquela universidade como parte do Programa de Leitorado do Ministério das Relações Exteriores (MRE/Itamaraty) e Ministério da Educação (MEC/Capes).


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