Racismo e repressão policial dão tom em produção vencedora de Oscar 2021 de curta-metragem
25 de julho de 2022 - 11h24
Dois Estranhos: racismo e negritude
Por Sophia Bicudo Passos da Fonseca
(Contém spoilers)
O documentário Dois Estranhos (com título original Two Distant Strangers), lançado em abril de 2020 na plataforma de streaming Netflix, roteirizado por Travon Free e dirigido por ele e Martin Desmond Roe, ganhou o Oscar de melhor curta-metragem na Live Action do ano passado.
Dois Estranhos retrata, no decorrer de 32 minutos, repetidas tentativas de um afro-americano fugir da perseguição e morte causada por um policial branco racista.
Somos espectadores de um ciclo de violências perpetradas contra esse homem negro; mas, para além disso, somos testemunhas do racismo estrutural presente na sociedade norte-americana (também historicamente marcante na sociedade brasileira).
Para compreender a importância e relevância desse documentário, é imprescindível entender o que é o racismo e a negritude. Todavia, antes disso, necessitamos saber o contexto no qual essa narrativa está imersa.
Os Estados Unidos da América aboliram a escravidão em 1865. No entanto, injustiças e atrocidades permaneceram enraizadas: segregação (política Separate, but equal), violência (linchamentos, estupros*) e opressão ainda hoje são vivenciados por diversos afro-americanos.
Segundo a Human Rights Watch, crimes de ódio direcionados a afro-americanos aumentaram significativamente no ano passado comparado a 2019. Ademais, conforme artigo da Equal Justice Iniciative, de 9 de setembro de 2021, crimes de ódio devido à raça são, principalmente, direcionados a afro-americanos.
Além disso, de acordo com pesquisa deste ano da AAPI (Stop Asian American and Pacific Islander), 35% das pessoas afro-americanas têm mais probabilidade de terem experienciado um crime ou incidente de ódio.
Dessa maneira, apesar de abolida somente em 1865, a escravidão nos Estados Unidos, manteve injustiças e violências. Isso é principalmente explicado devido ao racismo.
Fenômeno social, ideológico (há uma ideologia que utiliza a noção de raça para segregar e oprimir) e histórico (De Paula et al., 2020), o racismo está vinculado ao contexto histórico, cultural e econômico da sociedade e é responsável por criar “mitos, padrões, critérios, estereótipos que definem valores morais e estéticos, conformando o que deve ser considerado como bom, bonito e correto e, consequentemente, o que não o é” (De Paula et al., 2020, p. 3); pode ser aberto, agressivo (forma direta de racismo praticada com o intuito de discriminar outros indivíduos por meio de palavras/gestos ofensivos relacionados à raça), instituído (estabelecido em determinada cultura e praticado, por vezes, sem a pessoa preconceituosa dar-se conta de seu comportamento racista) e estrutural (De Paula et al., 2020). Assim, o racismo reflete a estrutura da sociedade, nesse caso norte-americana, a qual hierarquiza e discrimina as pessoas em função da cor da pele.
Quando o policial branco do documentário bate palmas ao afro-americano que está arduamente tentando escapar de ser assassinado, ele não apenas, cinicamente, aplaude esse indivíduo negro que lutou e empenhou-se em resistir ao racismo em uma de suas expressões (o homicídio de pessoas negras devido a sua cor de pele), mas também todo o grupo (afro-americano) que tenta diariamente não ser vítima dessa descomunal violência (tanto física, quanto verbal e simbólica).
Por isso, na cena após o policial levar o jovem até a casa e dele ser morto, evidencia-se o caráter estrutural do racismo, o qual permeia o tecido social dos Estados Unidos e, assim, valores morais e a cultura (de encarceramento**). Isso também pode ser observado na interação entre os dois personagens na conversa transcrita abaixo:
Policial branco: Não, isso é conversa fiada.
Afro-americano: Não é, cara. Nada disso. Entendo seu ponto de vista, mas acho que vocês investigam nossos bairros demais e nos punem demais, nos prendem sempre por bobagens, que são brincadeiras para os brancos. Ficamos presos num círculo eterno.
Policial branco: Qual é. Todos são responsáveis por suas escolhas. Mesmo que seja o crime. Ninguém os obriga a por a mão em vespeiro.
Afro-americano: Escute. Alguns cometem crimes. Mas que escolha eles têm, se os brancos nascem na cara do gol e os negros fora do estádio?
Policial branco: Quanto mimimi.
Afro-americano: É uma merda. É desumano. Se fossemos falar a verdade, o sistema dá o melhor prêmio a vocês pela única coisa que não depende de vocês: ser branco.
Nesse trecho, importante refletir que o próprio personagem está em um “círculo eterno”; ele é morto, renasce, é morto, renasce, em um ciclo que só parece poder ter um fim com a última fala do jovem afro-americano: “Não importa quanto tempo levar, nem quantas vezes, de uma forma ou de outra, vou pra casa ver meu cachorro”.
Dessa forma, o personagem está face ao racismo, um fenômeno social, ideológico e histórico que estrutura a sociedade norte-americana, de tal maneira que hierarquiza as relações dando “o melhor prêmio” aos brancos “pela única coisa que não depende” deles, ser branco.
Tendo em mente esse cenário de injustiça e violência, como combatê-lo e transformá-lo? Uma das formas é através da conscientização sobre a opressão histórica e sistemática, a desintoxicação semântica e a constituição de uma outra forma de relação consigo, os outros e o mundo que superem esse sistema desigual (Munanga, K., 2020). Isso, por sua vez, ocorre pelo reconhecimento da negritude (e/ou identidade negra), a qual, segundo Kabengele Munanga, se refere:
“[…] à história comum que liga de uma maneira ou de outra todos os grupos humanos que o olhar do mundo ocidental ‘branco’ reuniu sob o nome de negros. A negritude não se refere somente à cultura dos povos portadores da pele negra que de fato são todos culturalmente diferentes. Na realidade, o que esses grupos têm fundamentalmente em comum não é como parece indicar, o termo Negritude à cor da pele, mas sim o fato de terem sido na história vítimas das piores tentativas de desumanização e de terem sido culturas não apenas objeto de políticas sistemáticas de destruição, mas, mais do que isso, de ter sido simplesmente negada a existência dessas culturas” (2020, p. 19).
Dessa maneira, a negritude é extremamente importante para a conscientização da opressão, sustentada na hierarquização das pessoas através da cor da pele, o combate as violências históricas e a transformação desse contexto permeado por injustiças e atrocidades.
Assim, se você aprecia cinema, um bom começo é atentamente assistir ao curta-metragem Dois Estranhos. Mas não pare por aí! O racismo, como dito acima, é estrutural, de modo que, para superá-lo, é imprescindível haver um esforço constante e coletivo contra ele. Por isso, mantenha sentidos ligados para perceber e transformar essa injustiça no dia a dia e, dessa forma, na sociedade.
*Para mais informações sobre mulheres afro-americanas e violências perpetradas contra elas, recomendo o livro “E eu não sou uma mulher? Mulheres Negras e Feminismo”, da autora bell hooks.
**Para saber mais sobre a cultura do encarceramento nos Estados Unidos, recomendo o documentário “A 13ª Emenda”, disponível na plataforma de streaming da Netflix.
Referências
De Paula, Sâmela et al. Rascismo no Contexto Contemporâneo: Contribuições da Psicologia Social para a Problematização do Preconceito. TCC-Psicologia, 2020.
Munanga, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009
Sophia Bicudo Passos da Fonseca é estudante de Psicologia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, campus de Ribeirão Preto e autora do livro Escritos Poetizados, publicado pela editora Grupo Atlântico Editorial.