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Brasil

Nheengatu, de língua imposta pelo colonizador a linguagem de resistência indígena que sobrevive até hoje

Imagem da peça publicitária Çuikiri desenhada por crianças indígenas de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas

05 de abril de 2022 - 09h27

Crônica

 

Por Manoel Cyrillo de Oliveira Netto

Em artigo anterior, Holofote informou, em meu perfil biográfico, uma Medalha de Ouro ganha por mim, no 37* Festival Publicitário de Nova York, com a peça Çuikiri.

Vamos conversar um pouco sobre aquele trabalho? Será que existiria alguma correlação entre aquela peça premiada e o atual momento brasileiro?

Çuikiri, que em Nheengatu¹ significa verde, era uma mensagem de Natal, um Cartão de Natal, criado para um cliente meu, a Sanyo da Amazônia (razão social da Sanyo).

Como assim, o cartão de Natal era um vídeo? Sim, era! E era pertinente com a Sanyo, fabricante de televisores, videocassetes, aparelhos de som etc.

Acredite, Çuikiri foi todo feito por crianças indígenas de São Gabriel da Cachoeira, cidade do Alto Rio Negro, no Amazonas.

E como aquelas crianças puderam fazer um desenho animado?

Bem, Wilson Lazaretti foi o responsável pela mágica. Ele era professor de Didática da Animação do Instituto de Artes da Unicamp e, através de seu Núcleo de Animação de Campinas (entidade criada por ele), ensinava crianças a fazer um desenho animado –de verdade!- fazendo um.

E assim nasceu Çuikiri, que exigiu 35 dias de trabalho, lá em São Gabriel. Muito trabalho, numa localidade inesquecível, belíssima.

Çuikiri apresenta a devastação da floresta, as queimadas criminosas e a fuga e morte dos animais, isto é, a eterna e triste realidade da floresta… Mas, de repente, um milagre! Com o nascimento de uma criança em um casebre, a vida ressurge, a mata renasce, e acontece a Festa do Natal!

Quando o júri do Festival assistiu o vídeo, bateu o martelo, é este o campeão! Ganhamos!

Outra curiosidade. Eu, que participei da resistência armada à ditadura, fui pessoalmente aos Estados Unidos receber a medalha e, juro, entrei e saí legalmente do país, vivíamos outro mundo.

No instante em que me vi lá em cima do palco, auditório engalanado, em plena Manhattan, recebendo a medalha dos gringos, milhares de caras aplaudindo, eu apenas matutava uma coisa: eles nem imaginam a quem aplaudem… nem imaginam… nem imaginam…

Também eu nem imaginava que o tal do Bolsonaro, hoje em dia, pudesse estar fazendo na Amazônia o que faz. Lamentavelmente.

  1. Duas palavrinhas sobre o Nheengatu, uma história de brutal agressão e de belíssima resistência.
    Nos primórdios da colonização, nos primeiros contatos entre os portugueses e o povo da terra, os colonizadores acreditaram que todos os indígenas seriam membros de um único e mesmo povo, e teriam, todos, a mesma cultura, a mesma língua.
    A partir daí, começaram um grande esforço para traduzir a Bíblia para a língua dos “selvagens”, eles precisavam ser catequizados, precisavam ser civilizados!
    Rapidamente, porém, ficou claro a precariedade da língua dos pagãos, era uma língua muito pobre e que não suportava redigir uma versão da Bíblia.
    O que fazer?
    Ora, praticar novas e mais violências! Assim, por conta própria, começaram a “enriquecer” a língua dos outros. E, pouco depois, adquiriram uma fabulosa ferramenta para a profética missão da catequese: uma Bíblia na língua dos pagãos. Mas, deu chabu! Os hereges não eram um só povo!!!!
    Com o tempo, os portugueses foram descobrindo a existência de dezenas, de centenas de novos povos, novas nações, cada qual com a sua língua, a sua cultura…
    Pero, para a administração colonial, este foi um dilema de simples solução.
    Bastou um édito e toda aquela gente passou a ser obrigada, por lei, a falar, exclusivamente, a nova língua, e não mais a língua ancestral de cada povo, de cada nação – pronto, acabou!
    Mas a violência não ficaria por aí, séculos depois, o Marquês de Pombal constatou um risco para Portugal: a possibilidade concreta da perda de sua colônia, onde o português quase já não era mais falado pelo povo. Naquelas terras de além-mar, “toda” a população, fossem brancos, indígenas ou escravos, falava o Nheengatu, a língua geral (este é o significado mesmo de nheengatu, língua geral).
    De pronto, Pombal proibiu o Nheengatu.
    Mas os “selvagens” resistem! O Nheengatu é falado até os dias de hoje. E muitos povos também conseguiram preservar a sua própria língua, os selvagens são poliglotas, não deram a mínima para o Pombal.

 

Manoel Cyrillo de Oliveira Netto é publicitário, resistiu à ditadura militar, foi guerrilheiro urbano da ALN (Ação Libertadora Nacional), participou de várias ações armadas, entre elas a da captura do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick. Preso político, permaneceu encarcerado por 10 anos. Fora da prisão, ganhou a medalha de ouro com a peça publicitária Çuikiri no 37th New York Festivals Advertising Awards, o Festival Internacional de Propaganda de Nova York, e foi recebê-la nos Estados Unidos em 1991.


Comentários

Carmo Cangelli

05/04/2022 - 17h14

Manoel Cyrillo, meu querido amigo Maneco. Lembro bem de quando vc me mostrou o filme pela primeira vez e achei fantástico, coisa de mestre e grande criador que vc sempre foi mesmo. Só temos que agradecer esse trabalho maravilhoso que resgata nossa história
Valeu Maneco e valeu muito mesmo

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