Jardins chineses são planejados para gerar bem-estar e saúde física e mental; vários são tombados pela Unesco
15 de abril de 2022 - 15h17
O taoísmo e os jardins chineses
Por Carlos Alberto Shimote Martins
O paisagismo dos jardins chineses também é determinado pelo taoísmo e pela teoria dos cinco elementos como explicado no último artigo.
A composição de um jardim chinês é feita de maneira que os cinco elementos da filosofia taoísta, água, terra, fogo, metal e madeira, se façam presentes nesses espaços cênicos e paisagísticos.
Para os ocidentais, os elementos água, terra e madeira têm uma presença mais fácil de ser identificada na composição dos jardins chineses, pois a presença de lagos e fontes (elemento água), das árvores (elemento madeira) e dos canteiros compostos por terra (elemento terra) são bem evidentes nesses jardins.
Entretanto a cultura chinesa não é apenas formada por elementos evidentes, na maior parte das vezes aquilo que caracteriza e aquilo que constitui a cultura chinesa de modo mais profundo, e essencial, tem a marca da sutileza.
É o que ocorre, por exemplo, com a presença dos elementos fogo e metal na composição dos jardins taoístas da China.
O elemento fogo em um jardim chinês é determinado pela insolação e pela presença do sol nesses espaços paisagísticos, o que, por sua vez, poderá torná-los mais quentes ou frios a depender da localização desse jardim e do grau de insolação do terreno onde o jardim está localizado.
O elemento metal é determinado pelo uso das pedras, pois para os chineses as pedras em razão da sua constituição, cuja marca maior é presença de diferentes tipos de minerais em sua composição, são parte do elemento metal.
Assim, um típico jardim chinês além de fontes e/ou lagos, dos diversos tipos de plantas e inúmeros canteiros de terra, é também, obrigatoriamente, composto pelo uso de muitos tipos de pedras, de diferentes formatos e tamanhos, pois o equilíbrio de todos esses elementos pedras (metal), lagos (água), plantas e árvores (madeira), canteiros (terra) e condições de insolação (fogo) vão determinar tanto a beleza, quanto o bom fluxo da energia Qi, e que, para os chineses e para a filosofia taoísta, é a energia que garante a harmonia e/ou saúde de um jardim.
Os jardins chineses são espaços planejados para o bem-estar e para a geração da saúde física e mental. E, a consequência desse fato, é que esses jardins não são planejados apenas com o objetivo da beleza ou para serem áreas de lazer. Os jardins taoístas da China são planejados para serem espaços terapêuticos e de cura.
E, mais uma vez, como outro exemplo da sutileza que caracteriza e, muitas vezes, define a cultura chinesa, isto é, como aquilo que não se mostra de modo evidente, os jardins chineses são planejados e definidos com o emprego da geomancia taoísta, mais conhecida como Feng Shui.
É o uso do Feng Shui durante o planejamento de um jardim que, segundo os chineses taoístas, vai determinar os caminhos da energia Qi pelo ambiente, de modo a propiciar que esse ambiente seja simultaneamente um espaço de harmonia e saúde para quem o frequenta ou dele faz uso.
Outra das características mais marcantes dos jardins chineses é a presença de pavilhões, que são construções arquitetônicas para abrigar o ser humano de modo que ele possa ter contato com a natureza e possa deste modo contemplar o jardim mesmo em dias de chuva, de tempestades ou de neve.
Os pavilhões chineses são cobertos, mas geralmente são abertos em suas laterais, ou seja, são destituídos de paredes para que desta forma as correntes de ar e as temperaturas possam ser sentidas e percebidas por aqueles que usam essas edificações como espaços de contemplação.
Os pavilhões dos jardins chineses além de proteger o ser humano das chuvas, das intempéries, da neve ou do sol nos dias mais quentes, podem também ter outra função: serve em alguns casos para camuflar o observador de modo a permitir que ele possa contemplar e perceber os animais que povoam o jardim nas diferentes estações do ano sem assustá-los ou afugentá-los.
Pássaros, insetos, aves, peixes, quelônios (tartarugas e cágados), lagartos sapos e rãs e, a depender da localização do jardim, também serpentes e mamíferos.
Esses pavilhões de camuflagem, como os pavilhões de vários dos jardins da cidade de Suzhou (onde estão os mais famosos jardins tradicionais chineses, vários deles tombados como Patrimônios Históricos da Humanidade pela Unesco) são também elaborados de modo a servirem como espaços de privacidade, onde o usuário mais do que observar os animais do jardim, possa sobretudo observar outros humanos sem ser observado, possa ver sem ser visto.
Ou seja, são pavilhões elaborados como espaços em que o usuário tem total acesso ao mundo externo do jardim, mas sem que aquele que, eventualmente, esteja nesse espaço externo possa notá-lo ou perceber que está sendo observado ou vigiado.
Os pavilhões de camuflagem são normalmente construídos não com as laterais totalmente abertas como os pavilhões mais comuns, mas com paredes vazadas: paredes não totalmente abertas, mas construídas com elementos de cerâmica semelhantes aos cobogós, ou com um elaborado trabalho de marcenaria em que a madeira, à maneira de persianas ou venezianas ocidentais, são utilizadas como paredes com aberturas sutis: aberturas que permitem tanto a entrada das correntes de ar no interior dos pavilhões quanto a penetração da luz natural e, principalmente, que trazem a possibilidade do mundo externo ser observado por essas frestas por aqueles que fazem uso dessas construções.
Esses pavilhões com as laterais fechadas e com esses sistemas de camuflagem são mais comuns nos jardins privados do que nos jardins públicos. Isso porque o uso desses tipos de pavilhões era o modo dos senhores observarem o comportamento dos seus servos, sem que estes pudessem ter noção de que eram vigiados e, sobretudo, para que as mulheres senhoriais pudessem ter suas privacidades garantidas e, desta forma, se evitasse que fossem vistas pelos servos e outros homens de classes sociais consideradas inferiores, especialmente nos momentos em que os jardineiros e outros trabalhadores braçais faziam os trabalhos de manutenção dos jardins.
Os jardins chineses são concebidos e planejados para que os seus proprietários e, no caso dos jardins e parques públicos, para que os seus usuários possam tomar consciência dos ciclos de mutações da filosofia taoísta.
São paisagens concebidas para que os seres humanos possam observar as transformações pelas quais a natureza passa durante as fases lunares e os ciclos das estações do ano. E, assim, conectados com a natureza, os seres humanos também possam perceber as mutações e transformações dos seus próprios corpos e almas.
E é por isso que os jardins chineses não são espaços concebidos apenas para o lazer. Os jardins taoístas são concebidos sobretudo como espaços para fins terapêuticos e de cura: são planejados para aquilo que normalmente chamamos de tomada de consciência, isto é, para que, no caso, os seres humanos se conscientizem da conexão que existe entre o particular e o universal (unus + versus), ou entre o corpo e a alma de cada indivíduo com a totalidade do universo.
O paisagista chinês é compreendido por esta razão não apenas como um autor, ou seja, como um artista, mas também como um terapeuta: alguém que possui o conhecimento da mesma teoria que orienta o médico da tradicional medicina chinesa para o tratamento das doenças da alma e do corpo: o taoísmo.
Deste modo, o paisagista chinês elabora um jardim para ser sobretudo um ambiente que possibilite aos seus frequentadores e usuários a tomada de consciência do Tao (o caminho), qual seja o processo cíclico de mutações dos cinco elementos do universo que afetam o corpo e alma humanos e determinam a sua saúde física e mental.
Como observamos no artigo anterior, na parte sobre os cinco elementos do universo, há para o pensamento e cultura taoístas uma conexão profunda entre o todo e o particular.
Os cinco elementos que compõem a totalidade do universo (água, terra, fogo, metal e madeira) se refletem na particularidade do corpo e da alma dos seres humanos, de modo que, como consequência dessa compreensão, os órgãos internos que constituem a parte física, ou o corpo do ser humano, estão ligados a cada um desses elementos, e cada um desses órgãos do corpo humano gera, por sua vez, os cinco tipos de emoções da alma que podem afetar a saúde do corpo.
O elemento madeira está ligado ao fígado e à vesícula biliar (e o fígado gera a raiva), o elemento água está ligado aos rins e à bexiga (e o rins geram o medo), o elemento terra está ligado ao baço, pâncreas e estômago (e o baço gera a preocupação), o elemento metal está ligado ao pulmão e ao intestino grosso (e o pulmão gera a tristeza) e o elemento fogo está ligado ao coração e ao intestino delgado (e o coração gera a alegria).
O jardim taoísta chinês é concebido assim para ser um espaço cênico que, ao reproduzir em sua composição os cinco elementos do universo, exerça um efeito terapêutico sobre o corpo e a alma do indivíduo que o frequenta e dele faz uso e, desta forma, é planejado com o objetivo de ser uma espécie de remédio para curar os desequilíbrios que podem causar as doenças do corpo e da alma.
A função do paisagista chinês bem mais do que ser um arquiteto ou um esteta é a de mimetizar no espaço de um jardim não apenas toda a cosmologia e a cosmogonia do taoísmo, mas também mimetizar o todo no particular, ou seja, a totalidade da natureza e do universo (o macrocosmo) na particularidade de um jardim (o microcosmo).
Os jardins chineses quase sempre mimetizam as grandes paisagens do país: são espécies de miniaturas que reproduzem os grandes espaços de locais sagrados da cultura chinesa, paisagens sagradas e consagradas pela tradição.
A disposição, a forma e o modo como as rochas e pedras são colocadas e arranjadas nos jardins muitas vezes reproduzem, como se fossem miniaturas, as grandes cadeias de montanhas da China; os lagos muitas vezes são miniaturas de mares, ou mesmo de grandes lagos icônicos da paisagem chinesa; e as plantas e árvores tem quase sempre suas escolhas determinadas em função não apenas de seus aspectos estéticos como suas cores, época e duração das floradas, formas e tamanhos, mas sobretudo pelos seus significados de sorte, prosperidade, longevidade e proteção espiritual, significados estes extraídos de poemas, lendas e obras literárias tradicionais da cultura chinesa, ou da cosmologia e da cosmogonia taoístas.
O evidente e o sutil se somam e se combinam nesses jardins, e como pudemos observar há neles toda uma complexidade de sentidos e significados nem sempre fáceis de serem percebidos e compreendidos por nós ocidentais, especialmente quando nos fechamos diante de uma cultura tão antiga e, ao mesmo tempo, tão surpreendente e tão desafiadora como é o caso da cultura chinesa.
Carlos Alberto Shimote Martins morou em Pequim durante três anos e meio. Foi professor de Português, Cultura Brasileira e Literatura Brasileira na Universidade de Estudos Internacionais de Pequim (Beijing International Studies University/Erwai), no período de maio de 2010 a agosto de 2013. Foi o leitor escolhido para atuar naquela universidade como parte do Programa de Leitorado do Ministério das Relações Exteriores (MRE/Itamaraty) e Ministério da Educação (MEC/Capes).