Indicado ao Óscar em 12 categorias, Ataque dos Cães denuncia hipocrisia; premiação ocorre neste domingo, 27
19 de março de 2022 - 00h47
Ataque dos cães
(Contém spoiler)
Por Paulo André Machado Kulsar
Não existe nada mais antigo do que um cowboy que dá cem tiros de uma vez… Se você reconhece essa música, lembra de como a televisão era saturada de filmes de faroeste até o início dos anos 1980. Nossos pais não perdiam uma reprise de “Bang-Bang à Italiana”. Mas o gênero perdeu espaço, foi quase esquecido quando a chamada Nova Hollywood tomou as rédeas, com suas superproduções que contestavam o estilo clássico.
A ideia de uma nação forjada com a bravura dos pioneiros, que enfrentavam os selvagens e o ambiente inóspito do Velho Oeste, deu lugar à contracultura, aos direitos civis e ao pacifismo. Não estava mais evidente quem eram os mocinhos e quem eram os bandidos. Essa complexidade, que rejeitava o maniqueísmo e o heroísmo, passou a dominar as salas de cinema, e recuperou o interesse do público.
Esporadicamente, os fãs do bom e velho western puderam encontrar alguns bons filmes do gênero, como o excelente e premiado Os Imperdoáveis, de Clint Eastwood, em que já se percebe uma contestação da imagem heroica e infalível do cowboy clássico, mas nada que viesse a recuperar a potência de outrora.
E qual não foi nossa surpresa ao nos depararmos com um western dirigido por uma mulher, com uma história em que é difícil diferenciar mocinhos de bandidos (se é que os há), onde podemos observar personagens complexos, que exalam angústias e sentimentos conflitantes, e nada é o que parece ser.
Mas será que podemos chamar Ataque dos Cães de western? Bem, no filme em questão, a conquista do Oeste já está consolidada. A urbanização ainda é incipiente, mas os conflitos armados entre cowboys e nativos não são mais a tônica.
Ambientado em 1925, o filme trata de conflitos psicológicos dos personagens, dificuldades de relacionamento interpessoal, e apesar de não ser um faroeste clássico, é importante que o espectador tenha os clássicos como referência, pois é a expectativa de encontrarmos os tradicionais cowboys másculos e valentes que permitirá a experiência de desconstrução proposta por Jane Campion.
As metáforas sobre identidade e capacidade de enxergar o que não salta aos olhos, perceber o que se esconde sob as máscaras sociais nos surpreendem, nos forçam a repensar nossos preconceitos e sentidos.
O cowboy bruto e autossuficiente, Phil Burbank (Benedict Cumberbacht), que à primeira vista se apresenta como uma personalidade dominante e máscula, no decorrer do filme se mostra alguém sensível e que reprime uma homossexualidade latente e provavelmente realizada com seu ídolo, Bronco Harry, o mentor que teria ensinado a ele e ao irmão tudo o que sabem sobre a vida na fazenda e na intimidade.
Phil inclusive tenta projetar uma relação semelhante com Peter (Kodi Smit-McPhee), o enteado de seu irmão, o mesmo rapaz que ele humilhava por ser delicado e prendado, mas que procura conquistar ao perceber que seu segredo foi descoberto. Oportunidade de reviver a paixão perdida ou de afastar o rapaz de sua mãe, que causou o afastamento do irmão George (Jesse Plemons)?
A relação de confronto entre Phil e Rose (Kirsten Dunst), a agora cunhada, denuncia todo o ciúme que Phil sente em relação ao irmão, e a dificuldade de admitir que a infância se foi. George mudou para o quarto que era dos pais, para poder ter intimidade com a esposa. Trancou a porta do banheiro. Acabou a inocência, e isso é insuportável para Phil, que disputa poder com Rose a cada oportunidade. Toca seu banjo, atrapalhando-a, sempre que ela tenta praticar ao piano para atender às expectativas de George. Denuncia o alcoolismo dela, para inferiorizá-la.
Peter, por sua vez, apesar da sensibilidade e da aparência frágil, esquálida, se mostra no final do filme como alguém calculista e mentalmente forte, que sabe o momento de agir e de aproveitar as oportunidades. A mudança de atitude de Phil após ter seu segredo descoberto por Peter foi providencial para que o rapaz pudesse se livrar daquele que ameaçava sua mãe.
A perspicácia ao observar que o couro de um animal contaminado com antraz seria potencialmente fatal ao entrar em contato com a ferida na mão de Phil, associada à sorte de sua mãe ter vendido ao indígena o couro dos animais abatidos, demonstram a paciência e a frieza do estudante de medicina.
A corda, que serve de pretexto para a aproximação entre Phil e Peter, é o elemento chave de toda a história, pois serve como provocação, ao lembrar que o pai do rapaz morreu enforcado, mas ao mesmo tempo serve para formar um laço entre eles, uma intimidade e um compromisso.
Também pode ser o instrumento de captura, que o afastará da mãe ao prendê-lo sob a tutela de Phil. Mas ao final serve de ferramenta de execução, pois Peter se torna algoz de Phil ao contaminá-lo. E ainda gera uma dúvida em relação à morte do pai. Peter afirma ter sido a primeira pessoa a encontrá-lo, e cortado a corda. Não teria ele também matado o pai, que era um alcoólatra, e uma ameaça para a mãe?
E, por fim, analisemos o título do filme, que é uma referência ao Salmo 22 da Bíblia cristã, em que Cristo pede a Deus que o livre do ataque dos cães. Cães que são uma representação dos homens maus e ambiciosos, os hipócritas que tentam desacreditar a imagem e a palavra de Jesus Cristo.
Ataque dos Cães, então, é uma denúncia da hipocrisia que exige dos outros atitudes honradas, mas que esconde suas próprias ações, condenadas no discurso, mas praticadas na intimidade.
Paulo André Machado Kulsar é sociólogo formado pela USP (Universidade de São Paulo) e professor.