Apoie o holofote!
Busca Menu

CINEMA DE LUTO

Godard: morre último representante da Nouvelle Vague; movimento marcou cinema mundial

O cineasta franco-suíço, Jean-Luc Godard, que morreu nesta semana aos 91 anos

16 de setembro de 2022 - 12h16

O Desprezo

(Contém spoilers)

 

Por Paulo André Machado Kulsar

Morto. 2022. Nouvelle Vague.

Jean-Luc Godard, um dos maiores expoentes do cinema mundial, optou pelo suicídio assistido.

Assim, termina sua odisseia subvertendo, como era de seu feitio, as regras “naturais” da História.

Sua trajetória começa como crítico na principal revista de cinema da França e do mundo.

E como se provocado: “Não gostou? Vai lá, e faz melhor!”, foi lá e fez!

Controverso, sem dúvida! Há quem ame e quem odeie.

Em 1963, após o estrondoso fracasso de Tempo de Guerra (1962), resolve fazer uma reflexão sobre o próprio cinema, enquanto indústria e enquanto arte.

Um escritor francês é chamado para reescrever o roteiro de um texto grego num filme produzido por um americano, dirigido por um alemão e rodado na Itália. No meio desse processo, a bela esposa do escritor é pivô de uma crise de relacionamento, tanto do casal quanto do filme.

O desprezo de Godard pelas regras fica evidente nos cortes abruptos, nas releituras e mudanças de opinião, no desprezo que alguns personagens têm pelos outros.

O casamento, que parece ser testado na primeira cena, com Camille (Brigitte Bardot) nua sobre a cama ao lado de Paul (Michel Piccoli), seu marido, quando ela pergunta se cada parte de seu corpo o agrada. A iluminação muda de cor, causando um estranhamento no espectador. E Paul sempre afirma que gosta do corpo da esposa. Cena que, segundo Godard, não acrescenta em nada ao roteiro. Só foi incluída porque os norte-americanos exigiram ver a bunda de Bardot, símbolo sexual máximo dos anos 1960. Outras cenas com nudez da atriz foram incluídas para isso. Cenas filmadas após o fim da produção.

Se eu quero, e você quer, tomar banho de chapéu.

Raul Seixas e Paulo Coelho certamente se inspiraram na cena em que Paul está na banheira sem tirar o chapéu para escrever Sociedade Alternativa. Música que tem tudo a ver com Godard. Desprezo pelas regras. Viva a Sociedade Alternativa!

O casamento volta a ser testado quando o produtor Jeremy Prokosch (Jack Palance) oferece carona a Camille e sugere que Paul vá de táxi à casa onde está o produtor. Camille está evidentemente desconfortável, mas Paul concorda. Ao chegar, é questionado sobre seu atraso. Camille não gostou de ficar tanto tempo com o produtor, que só fala inglês, ou seja, não houve comunicação verbal. Godard e a subversão das regas. Prokosch não queria dialogar, queria admirar a beleza de sua convidada. A mulher é objeto (opa! Regra? Estereótipo? Pô, Godard!). Aliás, a intérprete, Francesca (Giorgia Moll), fundamental para que os franceses, o alemão, o americano e os trabalhadores italianos se comuniquem verbalmente, é objetificada, humilhada e abusada tanto pelo seu patrão americano quanto pelo roteirista francês. E Francesca se torna mais um elemento na crise conjugal, pois Camille vê Paul dando um tapa na bunda da intérprete. E quando estão indo embora, ela reclama de uma violência sofrida por ela, por parte do produtor. Assim, Camille vai revelando sua insatisfação com as atitudes do marido.

Paul e Fritz Lang (sim, ele mesmo!), o diretor, discutem sobre diferentes perspectivas sobre a Odisseia. Ulisses e Penélope seriam um casal em crise? Teria o herói se ausentado por tanto tempo se realmente amasse a esposa?

Colocar Fritz Lang como personagem, representando ele mesmo, se rendendo ao dinheiro americano, é um dos grandes momentos metalinguísticos do cinema!

Metalinguística que é jogada na cara do espectador logo na passagem dos créditos. Talvez uma das melhores cenas de créditos de todos os tempos: Na tela vemos um set de filmagem, uma câmera sobre trilhos, pessoas caminhando ao lado desses trilhos acompanhadas pela câmera. Uma narração em off, com a voz do próprio Godard, anuncia os créditos. Quando a câmera está bem próxima da tela, ela se vira para a plateia e focaliza os espectadores. “Ei! Esse filme é sobre vocês! Vocês estão aqui dentro!”

A crise conjugal, as discussões sobre a leitura da obra, tudo isso é o próprio cinema! Godard nos provoca a repensar se tudo aquilo em que acreditamos ao entrar numa sala escura é real, é imaginário, se diz algo sobre nós.

Fritz Lang, que saiu da Alemanha por não se submeter ao nazismo, foi para os Estados Unidos para poder trabalhar livremente. Ele, um cineasta clássico, aparece no filme como alguém que faz um cinema totalmente distinto do que fazia na vida real. A odisseia de Lang personagem de Godard é um filme com figurinos improvisados, imagens pictóricas esteticamente questionáveis, cenas que não correspondem ao narrado por Homero. Uma adaptação nada fiel à épica narrativa grega. Assim como um Lang nada fiel ao consagrado diretor.

Na longa cena do apartamento, após o encontro com o produtor, Paul e Camille fazem uma interminável DR, em que as idas e vindas mostram como existem dúvidas em ambos. Nada parece definitivo, nada é sólido, nada é natural. Tomar banho de chapéu, abrir uma porta para passar por dentro do vão, colocar a louça na mesa para não jantar, dizer que ama e que não ama, colocar e tirar peruca, trocar de roupa, falar palavrões, dizer à mãe que ela não está em casa, para em seguida passar o telefone, paredes brancas, latas de tinta espalhadas, móveis em cores saturadas, passar por baixo da escada e depois não querer passar. Incoerências, faltas de atenção, cobranças.

Ao contrário da célebre cena do quarto de hotel em Acossado, aqui é tudo caótico, nada parece fazer sentido. Até que a cena acaba quando Camille sai do apartamento e, já na escada, se vira para Paul e diz que o despreza. Durante o resto do filme, Paul procura entender o motivo do desprezo. Ao mesmo tempo em que os motivos vão se acumulando.

Ao final, o épico se torna trágico. Os elementos plantados, as armas de Tchekov, serão utilizadas? Mas chega de spoilers. Veja o filme, se ainda não viu!

 

Paulo André Machado Kulsar é sociólogo formado pela USP (Universidade de São Paulo) e professor.


Comentários

Nenhum comentário ainda, seja o primeiro!

Deixe seu comentário

Outras matérias