Fotografia: olhar de quem observa imagem não é neutro, tem conteúdo político
19 de março de 2022 - 15h14
Imagens mundanas, imaginários divinos (e vice-versa)
Por Carla Christiani
Dizem que quem não é visto, não é lembrado. Será? Talvez. Especialmente porque, lembrar ou não lembrar, depende essencialmente do grau de importância e dos significados atribuídos a quem não é visto (e a quem é visto).
Na contemporaneidade, estar à mostra, é um ato corriqueiro. Com o advento da imagem digital, a popularização da fotografia e do vídeo exerce um importante papel neste sentido, ou seja, no feito de mostrar-se. Selfies, stories, reels e textos ilustrados com imagens fotográficas, por exemplo, amplificam a visibilidade como meio para marcar a presença na rede.
Multiplicam-se imagens e imaginários. Multiplicam-se presenças e ausências. Aquilo que é visível em uma imagem nem sempre é visto. Mas a imagem, constantemente, conversa com o seu observador, às vezes ela tem algo muito pontual a dizer; outras vezes ela apenas é o que é e não precisa dizer absolutamente nada.
Clarice em “O ovo e a galinha”, vem intensificar a nossa reflexão, pois o trecho a seguir toca, habilidosamente, na questão da percepção relacionada ao imagético:
Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo. – Jamais pensar no ovo é um modo de tê-lo visto. – Será que sei do ovo? É quase certo que sei. Assim: existo, logo sei. – O que eu não sei do ovo é o que realmente importa. O que eu não sei do ovo me dá o ovo propriamente dito. – A lua é habitada por ovos. (Lispector:1977)
É interessante destacar, sobretudo, dois momentos: 1) “Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo” e, 2) “O que não sei do ovo é o que realmente importa”.
Ambos têm a ver com o reconhecimento das manifestações mundanas e divinas nas imagens e nos imaginários.
O mundano associado à materialidade, ao corpóreo, ao ovo propriamente dito. O divino agrupado ao imaterial, ao intangível, o intuitivo fio condutor que deriva de natureza imprecisa e nos faz crer que aquilo que não sabemos sobre o ovo é o que realmente importa, porque para saber é preciso imaginar!
Imaginar o inimaginável! Ver o que não é visto. E não pensar no ovo, apenas senti-lo.
Deste modo, refletir a partir de uma fotografia (seja uma selfie ou não), por exemplo, é criar a possibilidade de desenvolver uma relação discursiva dialógica com a imagem; uma relação proativa que pertence à dinâmica dos sentidos, pois, ver, refletir e imaginar são aproximações que abrem as portas para ser, estar, sentir e até mesmo imaginar-se.
A relação é dialógica porque, apesar da fotografia muitas vezes ser entendida como mera imagem “estática” e “silenciosa”, ela pertence à ordem do sensível.
O suposto silêncio de uma foto, muitas vezes, é capaz de nos invadir. E a comunicação que nos invade, dialoga diretamente com as nossas experiências, produzindo reações que transbordam a partir de uma combustão de sentidos que segue o seu fluxo em busca de algum frescor; e que tem energia inquietante suficiente para contemplar o mundano e o divino, proporcionando algum conhecimento sobre si mesmo e sobre as coisas da vida.
No jogo entre o visível, o invisível, o que é visto e o que é intuído, há imaginação, sentida e apurada e, comumente, há um lastro de memória que dilata e nos afeta, traduzido em linguagem.
Memórias não cabem em um tempo ou em um espaço particular, pois elas simplesmente fluem, incorporadas ao existir.
Porém, sempre que estamos diante de uma imagem, estamos diante do tempo. O tempo de encontro entre quem vê a imagem e a imagem propriamente dita.
A relação é dialógica, o lastro é a memória e a substância da nossa existência perante a imagem é o tempo – um aglomerado de tempos, substratos que criam o nosso presente, o nosso passado e as ideias que podemos ter sobre o nosso futuro.
E no processo de criação entre presente, passado e futuro a linguagem é fluída, pois a imagem tem mobilidade. Ela toca o real, carrega o real e se refaz, inúmeras vezes, a partir das relações. Por isso ela é mundana, divina e polissêmica, porque ela carrega significados tangíveis e intangíveis.
O ponto de vista de quem fotografa, da pessoa fotografada e de quem vê a fotografia, por exemplo, pode estar associado a universos bastante peculiares que legitimam a ideia de que a percepção de cada observador está constituída em suas experiências pessoais (objetivas e subjetivas) e que isso tem a ver também com as relações que são estabelecidas socialmente.
As imagens penetram nos saberes, nas vivências, nas emoções, nas intuições e nas imaginações dos sujeitos que as observam.
“Nem tudo que está na rua é uma porcaria! Prova disso? Eu sou o Eric”.
Esses dizeres estão na fotografia que ilustra este artigo. Mas, quem é o Eric? Quem somos nós? Que tipo de sociedade construímos? Qual a qualidade das nossas relações e dos imaginários que produzimos? Como queremos ser lembrados?
O olhar de quem observa a imagem não é neutro. Ele possui conteúdo político e pode ser um meio de resistência, de combate aos poderes instituídos, de crítica e de transformação social, quando conseguimos percebê-lo como algo que vai muito além da visão.
Carla Christiani é fotógrafa, cientista social formada pela USP (Universidade de São Paulo), mestre em Cultura e Educação pela mesma Universidade e professora universitária.