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CULTURA

Filme inspirado em obra dos anos 1920 mostra que mulheres negras não eram submissas

Cena do filme Identidade, da diretora britânica Rebecca Hall

13 de abril de 2022 - 13h15

O(s) feminino(s) na obra Identidade

 

Por Sophia Bicudo Passos da Fonseca e Francirosy Campos Barbosa

Aquele homem ali diz que as mulheres precisam ser ajudadas a entrar em carruagens, e que têm que ser erguidas para passarem sobre poças e terem os melhores assentos em qualquer lugar. Ninguém nunca me ajudou a entrar em carruagens, a passar por cima de poças de lama e nem me deu o melhor lugar! E eu não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para o meu braço! (E ela ergueu o punho para revelar sua tremenda força muscular). Tenho arado e plantado e ceifado, e nenhum homem poderia me superar! E eu não sou uma mulher? Eu posso trabalhar tanto e comer tanto quanto um homem – quando consigo comida – e também aguentar o chicote! E eu não sou uma mulher? Eu carreguei treze filhos, e vi a maioria ser vendida como escravo, e quando chorei minha tristeza de mãe, só tinha Jesus para me ouvir! E eu não sou uma mulher?

 

A ativista Sojourner Truth, nascida em torno de 1797, nos Estados Unidos, como escrava, foi uma figura importante na luta pelos direitos dos negros e das mulheres nos Estados Unidos, sendo parte de um de seus discursos mais célebres o trecho destacado acima.

Ao expressar suas ideias, envoltas em uma narrativa pessoal, Sojourner Truth deu ênfase a um tópico ainda atual: o que caracteriza uma mulher (e, logo, o que não é uma mulher)? Ou ainda, o que caracteriza o feminino (e, dessa forma, o que não é o feminino)?

É em meio a essas questões que discutiremos o feminino refletindo acerca das personagens Clare Kendry (Ruth Negga) e Irene Redfield (Tessa Thompson) do filme Identidade, produção norte-americana da roteirista e diretora Rebecca Hall, lançado em 2021 pela plataforma de streaming da Netflix e inspirado no romance Identidade, de Nella Larsen, publicado em 1929 nos Estados Unidos, e que se passa no Harlem, em Nova York.

Para tanto, é crucial partirmos da noção de que “quando falam de pessoas negras, o foco tende a ser homens negros; e quando falam sobre mulheres, o foco tende a ser mulheres brancas” .

Isso porque é necessário compreender que a noção de feminino foi construída, nos Estados Unidos, emaranhada à branquitude, concomitantemente com a visão difundida, no senso comum, de cinco figuras estereotipadas acerca das mulheres negras, segundo Patricia Hill Collins.

A mammy, vista como assexuada e dedicada a família branca para a qual trabalha (simboliza a mãe negra “boa”), a matriarca, considerada agressiva e dominadora (simboliza a mãe negra “má”), a mãe dependente do Estado, qualificada como uma mãe ruim e acomodada, a dama negra, considerada assertiva em demasiado e que trabalha muito e a jezebel (prostituta ou hoochie), vista como sexualmente agressiva.

Assim, ao passo que a feminilidade estava associada à passividade, submissão, casamento, maternidade e a desvinculação da própria sexualidade, as mulheres negras, em geral, eram vistas como possuidoras de atributos distantes destes, de tal forma que, por vezes, eram classificadas como “não femininas”.

Inclusive as mammys, as quais, apesar de mais relacionadas ao ideal de feminilidade da época, ainda assim não o atingiam porque se dedicavam exclusivamente a criar os filhos de suas empregadoras, e não os seus próprios, de acordo com o estereótipo desse período.

Esses pontos destacados nos levaram a refletir sobre as personagens Clare Kendry e Irene Redfield. A primeira é uma mulher negra, casada com um homem branco e com uma filha chamada Margery, a qual “passa” como branca.

A família aparenta ter uma ótima condição de vida econômica (classe alta) e se muda de Chicago para Nova York ao longo do filme.

Também é importante evidenciar que na narrativa fílmica e/ou literária transparece que Claire teve uma adolescência turbulenta em virtude se seu relacionamento com o pai e que, após seu falecimento, se muda para a casa de duas tias brancas, religiosas e rígidas.

Pouco depois conheceu e se casou com John Kendry, o qual não sabe, na maior parte da história, que sua esposa é negra.

A segunda, por outro lado, é uma mulher negra, casada com um homem negro e com dois filhos chamados Ted e Júnior, e que apesar de conseguir “passar” como branca, não o faz.

A família parece ter uma boa condição de vida econômica (classe média). Enquanto Irene Redfield participa de eventos para valorizar a negritude, como o baile da Liga pelo Bem-Estar dos Negros e deseja permanecer nos Estados Unidos apesar do racismo e da vontade de Brian Redfield, seu marido, de mudar de país; Clare Kendry, na visão da narradora, é uma mulher que desconsiderava “o incômodo, a amargura ou o sofrimento alheio […] [e] não se importava em nada com a raça. Simplesmente pertencia a ela”, havendo “certa característica, firme e persistente, como a força e a durabilidade de uma rocha, que não podia ser vencida ou ignorada” e permanecendo “uma criança bonita e solitária, mas também egoísta, teimosa e perturbadora”, ao passo que Irene Redfield, indiretamente, se descrevia tendo um temperamento “prático e determinado” e desejando ter o controle (encaminhar as situações tal qual a sua vontade) e manter “a agradável rotina sem perturbações”, como transparece no trecho abaixo do livro de Nella Larsen:

Ela [Irene Redfield] só queria que ele fosse feliz, ainda que ficasse ressentida pela incapacidade de Brian de ser feliz com as coisas como elas eram, sem jamais reconhecer que, embora o quisesse feliz, Irene desejava que isso ocorresse apenas ao modo dela e por meio de algum plano que ela tivesse para ele. E a mulher também não admitia o fato de que via qualquer outro plano ou qualquer outro modo como ameaça, mais ou menos indireta, à segurança do lugar que ela insistia em ter para seus filhos, e em menor grau, para si.

Assim, ambas, apesar de possuírem a mesma raça e o mesmo gênero, têm realidades díspares dado que possuem prioridades e valores diversos, os quais estão de modo, mais ou menos acentuado, relacionados a ideia de feminino da época.

Claire Kendry se apresenta como uma esposa diligente que acompanha o marido em certas ocasiões de trabalho (como observado no início do filme) e se importa com a filha, fazendo comentários, tais como “ela é fantástica”, mas que também demonstra individualidade marcante e dominância acerca do rumo da própria vida, seguindo-a de acordo com seus desejos sem aparentar consultar o marido antes de tomar a maior parte de suas decisões.

Enquanto isso, Irene Redfield, se coloca como uma esposa e mãe dedicada ao bem-estar familiar, ao mesmo tempo em que almeja estar à frente das situações e conduzi-las, assim como seus planos, os quais considera serem os melhores (como observado no trecho acima).

Dessa forma, tanto a primeira, quanto a segunda, evidenciam estar ligadas aos ideais de maternidade e casamento vinculados a feminilidade da época, mas concomitantemente, mostram ser mulheres fortes, dominantes e assertivas em diversos momentos da narrativa (características não associadas ao feminino nesse período).

Apesar dessas semelhanças, no entanto, as duas divergem em alguns pontos: Claire Kendry apresenta-se como individualista, desejando seu bem-estar independente do impacto nos outros, ao passo que Irene Redfield demonstra uma preocupação maior com os membros de sua família antes de si mesma e um maior vínculo com os movimentos para a valorização de sua raça.

Isso, por sua vez, impacta as escolhas que as duas realizam quanto a suas vidas, porque caracteriza as prioridades que têm em relação ao curto, médio e longo prazos.

Ademais, Claire Kendry e Irene Redfield também têm realidades diversas devido a serem vistas como sendo de raças diferentes, dependendo do contexto e dos atores envolvidos, e por estarem em classes sociais diferentes.

Para entender melhor a implicação prática dessa diferença, é importante trazer o conceito de interseccionalidade “cunhado” pela estudiosa de direito afro-americana Kimberlé Crenshaw e transcrito da seguinte forma por Collins e Bilge: “a interseccionalidade considera que as categorias de raça, classe, gênero, orientação sexual, nacionalidade, capacidade, etnia e faixa etária, entre outras, são inter-relacionadas e moldam-se mutuamente”.

Com base nesse conceito, logo, compreendemos que o fato de Claire Kendry se “passar” por branca na sua vida doméstica, traduzindo uma das possibilidades implicadas na ideia de que “[…] para o negro existe apenas um destino. E ele é branco”, molda sua cotidianidade porque impacta nas formas de violência que vivencia.

Dessa forma, essa provavelmente encontrará discriminação em diversos momentos pelo fato de ser mulher, assim como Irene Redfield, porém, diferente desta, provavelmente não sofrerá preconceito em virtude de sua raça, o que caracteriza uma outra forma de violência e, desse modo, de vida.

Já Irene Redfield, devido “passar” por branca apenas em algumas ocasiões, habita um cotidiano marcado pela discriminação de gênero e de raça. Isso, por sua vez, somado ao maior poder aquisitivo da primeira contribui para a realidade díspar em que se encontram.

Essas diferenças, em conjunto com os estereótipos descritos por Patricia Hill Collins, influenciam as pressões que vivenciam relacionadas a manter um padrão de gênero.

Assim, apesar da narrativa não explorar a vida doméstica de Claire Kendry, notamos que essa é diferente da que Irene Redfield habita, da mesma forma que as expectativas em relação a essa quanto a seguir os ideais de feminino da época (passividade, submissão, casamento, maternidade).

Além disso, nesse processo evidenciamos a multiplicidade dos femininos e, desse modo, adquirimos um olhar feminista decolonial na medida em que rompemos com a categorização suprematista do que é ser “mulher”.

Nesse sentido, as diferenças das personagens servem de catalizador para ampliarmos a visão, outrora reducionista, de um padrão único, absoluto e universal de mulher e, nesse processo, contribuem para vislumbrar caminhos a fim de responder o que caracteriza uma mulher (e, logo, o que não é uma mulher) e o que caracteriza o feminino (e, dessa forma, o que não é o feminino).

Finalizamos, desse modo, instando a pensarem acerca dessas questões e no discurso de Sojourner Truth. O que caracteriza o(s) feminino(s)? Um bom começo rumo a essa resposta talvez seja a obra cinematográfica e literária “Identidade”.

Referências bibliográficas

COLLINS, Patricia Hill. Pensamento Feminista Negro. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2019.

COLLINS, Patricia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2021

DOS SANTOS, Milene Fádua Vieira. O feminismo terceiro mundista: o feminismo decolonial das mulheres de cor da América Latina.

FRANTZ, Fanon. Pele Negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

GILBERT, Olive. E eu não sou uma mulher? : A narrativa de Soujorner Thuth. Rio de Janeiro: Imã editorial, 2020

hooks, bell. E eu não sou uma mulher?: mulheres negras e feminismo. 7. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2020

LARSEN, Nella. Identidade. 1 ed. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2020.

 

Sophia Bicudo Passos da Fonseca é graduanda em Psicologia pela USP (Universidade de São Paulo) no campus de Ribeirão Preto e realiza pesquisa sobre o filme Identidade sob orientação de Francirosy Campos Barbosa, que é antropóloga, docente associada no Departamento de Psicologia da USP no campus de Ribeirão Preto, pós-doutora pela Universidade de Oxford, na Inglaterra, coordenadora do Gracias (Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes), autora entre outros livros de Hajja, Hajja – a experiência de peregrinar e  diretora do documentário, Allah, Oxalá na trilha Malê, entre outros. E-mail: franci@ffclrp.usp.br


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