Convertido ao islã, Ahmad Jamal completará 92 anos em julho produzindo jazz de alta qualidade
23 de maio de 2022 - 16h35
Por Renato Marques
Em meio ao frio que afeta São Paulo e boa parte do território brasileiro em um maio atípico, escuto Caetano Veloso e de sua voz ecoa: “…melhor do que isso somente o silêncio, melhor do que o silêncio só João”.
Esse trecho de Pra Ninguém, tema que exalta grandes nomes da MPB, gravada em 1997 no álbum Livro ressalta algo que costuma ser esquecido ou mesmo ignorado pela maioria das pessoas ao ouvirem uma música. A importância do silêncio.
Em um mundo onde a arquitetura do Capitalismo e sua sociedade de consumo reforça o tempo todo o movimento, a ação, o fazer. Nós pobres mortais, ouvintes distraídos, fomos acostumados a prestar atenção no som, abstraindo a importância do seu contraponto, como se o caractere pudesse sobreviver sem o papel ou o traço sem a tela.
O óbvio ao se escrever sobre música é discorrer sobre os feitos que os efeitos sonoros mais chamativos podem trazer para nosso cérebro e alma, a partir da técnica refinada e virtuosística dos grandes músicos.
Mas em tempos de embrutecimento político ideológico, de presidente cultuando a violência e seguidores que brandem suas armas e vociferam seus ódios contra o conhecimento, a arte e a estética, lembramos que a Cultura pode emergir como contradita ao óbvio forjado de forma uníssona e, portanto, perseverar na negação aos apelos da turba.
A partir dessa anamnese salta aos olhos a figura de Ahmad Jamal.
Pianista, compositor, educador, figura destacada do Jazz, que em julho completará 92 anos, representa uma exceção no incrível universo dos talentos que a música instrumental proporciona à população mundial.
Esse negro oriundo de Pittsburgh, na Pensilvânia, que iniciou-se ao piano aos três anos de idade e, já músico profissional converte-se ao Islã – adotando o novo nome, com pouco mais de duas décadas de existência, sendo mais um afrodescendente a se encontrar com a religião que simboliza concomitantemente, equilíbrio, união e a emancipação racial nos Estados Unidos, à época ainda segregado, empolga desde a adolescência nomes do Jazz como o colosso da técnica ao piano, Art Tatum, que tece loas às suas qualidades inúmeras vezes.
Jamal percorre uma longa trajetória musical, convivendo (muito bem) com algumas das várias fases do Jazz. Cresceu no período do Swing com o brilho das Big Bands, vivenciou o apogeu do Bebop e do Hard Bop e foi figura central na transição para o Cool Jazz.
Minimalista, explorou com seus trios clássicos (piano, baixo e bateria) a potencialidade do ritmo, o qual quebrava suavemente alterando a dinâmica e a tensão entre frases musicais e espaços, gerando hesitações abstratas.
Aliás sua revolução a respeito dos espaços silenciosos encantou Miles Davis de forma tão intensa, que críticos do naipe de Gunther Schuller consideram sua influência como decisiva na formação dos conceitos inovadores do trompetista mais audaz da música.
Por outro lado, sua opção por gravar músicas com apelo popular, somado à preferência pela economia de notas, em uma época – anos 1950 – que o turbilhão delas era o cânone, fez inúmeros críticos torcerem o nariz para seu som, muitas vezes comparando-o a um mero pianista de bar.
A longa carreira, que se estende até a atualidade e toda a obra desde The Piano Scene of Ahmad Jamal de 1951 até Ballades de 2019, passando por seu mais consagrado álbum At the Pershing: But Not for Me de 1958, deixou claro apenas que cronistas, muitas vezes possuem comportamento de manada, com dificuldade em enxergar que a simplicidade produz beleza, quando pensada e executada por alguém que expõe sua técnica, sem perder a sensibilidade.
Em tempos de obscurantismo, e que o moto contínuo dos uivos cercam a todos gerando uma polifonia caótica, que se impõe obrigando-nos uma comunicação de silvos tonitruantes é um bálsamo lembrar que para o som se propagar, o silêncio faz-se necessário, seja como peça na construção de uma melodia, ou como ato de resistência.
Renato Marques é professor, humanista e contramajoritário.