Batman de Reeves exprime sociedade capitalista que amplia desigualdade e individualismo
04 de maio de 2022 - 09h57
Batman
Por Paulo André Machado Kulsar
(Contém spoilers)
Cuidado! Há um morcego na porta principal.
Jards Macalé nos avisou que no céu de Gotham City há um sinal, e esse sinal, assim como o filme de Matt Reeves, fala sobre cuidado.
Cuidado no sentido de aviso aos criminosos, que precisam se cuidar porque o Batman (Robert Pattinson) pode sair das sombras a qualquer momento, mas também cuidado no sentido de cuidar dos outros, como Bruce Wayne aprenderá durante sua caçada ao Charada (Paulo Dano).
Este é o primeiro filme dedicado ao Batman. Sim, o primeiro.
Os filmes de Burton e Schumacher eram filmes dos vilões, assim como aquele baseado na série televisiva, de 1966. O primeiro de Nolan foi sobre Bruce Wayne, e os outros dois foram dos vilões.
Reeves nos apresenta, finalmente, um longa-metragem focado no Batman, em sua forma de enxergar Gotham City e pensar em sua atuação.
Numa Gotham City sombria, suja, Batman está em seu segundo ano como vigilante, já conquistou a confiança de James Gordon (Jeffrey Wright), mas não dos outros policiais, que reclamam da sua presença na cena do assassinato do prefeito e candidato à reeleição.
O vigilante está se consolidando como detetive, e enxerga detalhes que passam despercebidos pela polícia.
Além disso, o assassino deixa recados para Batman em cada vítima, cada um com uma ou mais charadas, que o herói consegue decifrar para saber os próximos passos do vilão.
A cada vítima, o Charada revela detalhes sobre a corrupção que envolve os políticos da cidade, suas ligações com a máfia e a hipocrisia dos planos de mudança, sempre prometidos e nunca realizados.
Os noticiários anunciam que a criminalidade em Gotham vem subindo, e Batman se pergunta se ele faz alguma diferença.
Quando Bruce Wayne encontra a candidata a prefeita Bella Reál (Jayme Lawson), que será eleita posteriormente, esta questiona o bilionário sobre sua responsabilidade como cidadão, que deveria contribuir financeiramente com a cidade.
Mais tarde, em uma conversa com a Mulher-Gato (Zoë Kravitz), ela comenta que obviamente ele cresceu rico, pois não tem noção do significado de uma escolha, ao questioná-la sobre seu hábito de roubar dos mafiosos.
É importante observar como duas mulheres negras questionam o milionário sobre sua condição social e sobre sua visão de mundo. Jogam na cara do herói que ele deveria atuar de outra forma.
Particularmente, isso me deu uma satisfação, pois como leitor das HQs do Batman, há muito tempo faço esse questionamento.
Será que Bruce Wayne não teria condições de agir no combate à desigualdade com melhores resultados, atuando nas causas da criminalidade ao invés de lutar contra seus efeitos?
O Porta dos Fundos fez um excelente vídeo sobre isso recentemente. Mas nesse caso, as histórias perderiam seu sentido, certo?
Este tipo de questionamento é reforçado na disputa entre Batman e Charada, quando o vilão declara que a inspiração para seus crimes veio do vigilante mascarado, que era considerado um aliado, não um adversário.
O Batman, ao se deparar com o painel montado pelo Charada em seu apartamento, vendo que reportagens sobre ele e sobre Bruce Wayne estavam ligadas, deduziu que o Charada conhecia sua identidade, e assim seu papel como vigilante estaria em risco.
Mas o grande detetive deixou que sua emoção (e seu trauma) se sobrepusesse à razão, ao não perceber que o Charada tentou matar Bruce Wayne, mas deixou um recado para o Batman. Seria incoerente da parte de alguém tão inteligente.
E durante o encontro, o Charada se mostra decepcionado com seu “aliado”, que não conseguiu identificar o verdadeiro significado das pistas deixadas, que não eram desafios, mas instruções.
Batman foi o tempo todo manipulado, ao mesmo tempo que o Charada imaginava estar sendo ajudado.
Ambos se deixam levar pela emoção e por uma superestimação do outro. O vilão se considerava um justiceiro, enquanto o herói se tornou cúmplice, por não compreenderem o significado real dos sinais, ou por uma falha na concepção de leitura.
O que nos leva aos seguidores do Charada, que Batman precisa combater na parte final do filme, e que ensinarão a lição que o herói precisava compreender.
No céu de Gotham City, além do bat-sinal, há um sinal de internet, que permite ao Charada disseminar suas ideias em fóruns anônimos, propiciando a organização de atentados que ameaçam a cidade, tanto no indivíduo, a prefeita eleita, como no coletivo, a população ilhada.
E a partir da percepção de que a ameaça é coletiva e difusa que o Batman percebe que estava trilhando o caminho equivocado.
Tanto Batman como o Charada atacavam alvos individuais, que serviriam, em suas visões, como símbolos ameaçadores que coibiriam crimes futuros.
Da mesma forma que os defensores de leis mais rígidas, penas mais longas, acreditam que haverá redução da criminalidade simplesmente pela ameaça.
Mas já na primeira cena em que o Batman aparece, podemos ver que a máscara é ameaçadora também para o cidadão que está sendo protegido. Ele tem medo que o Batman o machuque. Batman está no “modo vingança”.
Ele se autoidentifica como “A vingança”. Justamente por se considerar uma vítima individual da criminalidade, por considerar que seus pais foram assassinados por um assaltante, um indivíduo que queria “ganhar dinheiro sem trabalhar”.
Entretanto, após ouvir os puxões de orelha de Bella Reál e Selina Kyle (a Mulher-Gato), perceber que a máfia poderia ter sido responsável pela morte de seus pais, que a polícia não era totalmente corrupta, e principalmente, após ouvir um dos seguidores do Charada se autointitular “A vingança”, ele percebe que o caminho para o combate à criminalidade deve ser coletivo, baseado no cuidado e não na ameaça.
E isso é simbolizado nas crianças que ele ajuda, que não o temem, mas o veem como uma figura de esperança.
É importante prestar atenção ao papel de Alfred (Andy Serkis), que mesmo com pouquíssimo tempo de tela é personagem essencial na mudança de perspectiva de Batman durante o filme.
Se no início Bruce Wayne recusava o apoio e o cuidado de Alfred, no decorrer da história ele vai percebendo a importância deste cuidado, tanto afetivo como racional.
Assim, podemos perceber que o filme dialoga fortemente com o momento político atual da sociedade capitalista, em que a desigualdade se amplia diariamente, e fica evidente que a concentração de renda e o individualismo não resolvem os problemas. Ao contrário, os agravam.
Que o Batman tenha aprendido essa lição, e nos próximos filmes Gordon não seja uma simples escada, mas um aliado, assim como a polícia e a sociedade de Gotham.
Paulo André Machado Kulsar é cientista social pela USP (Universidade de São Paulo) e professor.