Redesenho da Pequim do século 21 une ciência, tecnologia e finanças na mesma cidade
23 de março de 2022 - 03h04
Pequim
Por Carlos Alberto Shimote Martins
Pequim, a palavra da língua portuguesa com a qual nos referimos à capital da China, deriva da antiga transcrição fonética do mandarim para as línguas românicas. E essa transliteração esconde o significado da palavra, e que aparece claramente em Beijing (a transcrição fonética contemporânea do mandarim).
A palavra Beijing é composta por dois caracteres da língua chinesa: Bei (cujo significado é norte) + Jing (cujo significado é capital). Beijing significa literalmente, portanto, a capital do norte. Na cultura clássica da China, aliás, é comum o uso dos pontos cardeais como meio para se referir às capitais.
Exemplos disso são outras palavras da língua chinesa: Nanjing (ou Nanquim, pela antiga transliteração, que é uma das antigas capitais da China e cujo significado deriva de Nan = sul + Jing = capital, ou seja, capital do sul) e Dongjing (que nada mais é do que Tóquio, a capital do Japão e cujo significado em chinês deriva de Dong = leste + Jing = capital, a significar – portanto, capital do leste).
A capital da China possui quase três mil anos de história, e Pequim ocupa a função de capital mais importante da China há quase 800 anos.
Trata-se de uma cidade localizada no norte da China, rodeada de montanhas, com o clima seco e frio (chove pouco, as chuvas se avolumam no verão, mas nas demais estações são raras; e no inverno, apesar do frio intenso, a secura do ar torna as nevascas algo não muito comum, costumam ocorrer invernos sem qualquer precipitação de neve, e, excepcionalmente, alguns invernos úmidos com nevascas).
A capital da China – apesar de muito antiga quando, por exemplo, comparada com as cidades brasileiras – guarda uma semelhança com Brasília, pois é uma cidade igualmente planejada.
E o planejamento de Pequim se deu em conformidade com a geomancia e geometria taoístas, aquilo que chamamos normalmente de “feng shui“. O mapa de Pequim, lembra um “baguá” (a principal ferramenta utilizada pelo “feng shui“).
E o centro histórico da cidade possui um projeto que visa colocar em harmonia o fluxo da energia “Qi” (pronuncia-se “Tchi“). Isso explica a razão pela qual, em cada ponto cardeal da cidade foram construídos templos e parques em conformidade com a filosofia taoísta.
No norte da cidade, fica o templo e o parque da terra, no sul o templo e o parque do céu, no oeste o templo e o parque da lua e no leste o templo e o parque do sol. Esses templos e parques têm a função, segundo o “feng shui“, de fazer fluir a energia “Qi” para, deste modo, tornar a cidade de Pequim um lugar saudável, pleno de harmonia, proteção e prosperidade.
Por Pequim estar localizada em um local muito seco, foram construídos na cidade (à semelhança do que se fez em Brasília com o lago Paranoá) vários lagos artificiais não apenas para umidificar o ar, mas sobretudo para abastecer a cidade com água potável.
E uma das maiores obras hidráulicas da história da humanidade, o Grande Canal, tem uma função estratégica nessa estrutura urbana de sofisticado planejamento.
O Grande Canal não apenas foi uma grande via mercantil de extrema importância para o desenvolvimento econômico de Pequim, mas também um meio estratégico para abastecer a cidade com as águas transpostas dos grandes rios e seus afluentes do sul da China.
O Grande Canal, que foi todo cavado à mão por centenas de milhares de trabalhadores, forma com a Grande Muralha a identidade de Pequim como a cidade das grandes obras humanas.
A capital da China, a propósito, têm sete obras reconhecidas pela Unesco como Patrimônios da Humanidade: o Grande Canal, a Grande Muralha, a Cidade Proibida, o Palácio de Verão, o Templo do Céu, as Tumbas da Dinastia Ming e a caverna pré-histórica de Zhokoudian (onde foram encontrados os esqueletos do chamado “homem de Pequim” e onde estão as ruínas e vestígios dessa civilização pré-histórica da Ásia).
Na atualidade, a cidade de Pequim se expandiu para além do seu eixo histórico. Trata-se de uma mega cidade com mais de 21 milhões de habitantes, com mais gente do que muitos países do mundo, como Portugal e Irlanda, por exemplo.
A cidade, no entanto, não abandonou em seu crescimento o seu desenho original e se foi expandindo ao redor do centro histórico, por meio do planejamento de anéis viários em torno de todos os seus pontos cardeais.
Assim, logo depois do centro histórico há o primeiro anel norte, o primeiro anel sul, o primeiro anel leste e o primeiro anel oeste. E na sequência o segundo anel, o terceiro anel, o quarto anel, o quinto anel, o sexto anel e, por ora, sétimo anel viário.
O primeiro anel é o mais próximo do centro histórico e o sétimo anel o mais distante (aquilo que no Brasil chamamos genericamente de periferia). A distância entre esses anéis viários aumenta à medida que se vão afastando do centro histórico. A distância entre o primeiro e segundo anel é de cerca de 2,5 km, por exemplo. Entretanto, a distância entre o quarto e quinto anel é de cerca de 6 km.
A região oeste, nos arredores do templo e do parque da lua, sempre foi a parte mais aristocrática da cidade. O oeste de Pequim é onde estão localizadas as grandes universidades da cidade (Universidade de Pequim, Universidade Tsinghua, Universidade de Estudos Estrangeiros e Universidade do Povo), e algumas das maiores atrações turísticas da capital chinesa como o Palácio de Verão, o Jardim Botânico, o Zoo, o Parque das Ruínas do antigo Palácio Imperial, as Tumbas da Dinastia Ming e uma das vias de acesso à Grande Muralha.
E junto das duas maiores e mais importantes universidades chinesas (Universidade de Pequim e Universidade Tsinghua) fica o distrito de Zhongguacun: o distrito de alta tecnologia de Pequim, também conhecido como Vale do Silício da China, e onde estão as maiores empresas chinesas das áreas de tecnologia da informação, robótica, inteligência artificial e nanotecnologia.
Na região oeste fica também a maior estação ferroviária da capital chinesa, Beijing Xi Zhan (literalmente estação do oeste de Pequim), é dessa estação que partem os trens internacionais que ligam Pequim a Moscou (Rússia), a Hanoi (Vietnã) e a Pyongyang (Coréia do Norte). E também o expresso que liga Pequim ao Tibete (Lhasa), e os trens de alta velocidade (trens-bala), que ligam Pequim a Hong Kong, a Guangzhou e Shenzhen (cidades na província de Cantão, no sul da China, próximas de Hong Kong e Macau).
O lado oposto, a região leste da cidade, nos arredores do templo e parque do sol, sempre foi a zona operária e industrial de Pequim. No entanto, nos últimos anos, com o grande desenvolvimento da China, a parte leste foi a mais remodelada e transformada da cidade.
Antigas fábricas altamente poluentes foram destruídas e transferidas para locais distantes da capital chinesa, bairros operários inteiros foram totalmente demolidos, grandes avenidas foram abertas e, no local onde ficavam essas antigas construções e bairros operários, foram construídos áreas verdes como o Parque Chaoyang e bairros planejados como o CBD (Central Business District), onde estão os maiores arranha-céus de Pequim e onde ficam as sedes das principais empresas estatais chinesas, assim como as sedes de instituições financeiras de todo o mundo.
Atualmente, é na parte leste de Pequim que estão situados os dois setores de embaixadas da capital chinesa, o primeiro deles em torno da Guanghuá Lu e do templo e Parque do Sol (é onde estão as embaixadas do Brasil, dos Estados Unidos e do Reino Unido, por exemplo); o segundo setor de embaixadas fica, não muito longe dali, na região de Sanlintun. Atualmente, existem em Pequim 175 embaixadas com atividades diplomáticas.
A cidade de Pequim do século 21, redesenhada e remodelada, é, deste modo, uma cidade que une o leste e o oeste, o eixo do templo do sol e do templo da lua da antiga cidade histórica, em um novo eixo. Um novo eixo onde estão os dois fundamentos estratégicos do desenvolvimento chinês do século 21: a ciência, o conhecimento e a tecnologia de um lado; e a economia e as finanças de outro.
No lado oeste está o distrito da ciência e da alta tecnologia de Zhongguacun, e, no lado leste, o CBD, o distrito das finanças e das empresas estatais chinesas.
O norte da cidade, onde estão o templo e o Parque da Terra, e que sempre foi uma tradicional zona residencial, é a região de Pequim onde foram construídos o Parque Olímpico e todas as grandes obras e edificações em que ocorreram os Jogos Olímpicos de Verão de 2008 e, mais recentemente, os Jogos Olímpicos de Inverno de 2022. É uma área que, a exemplo do leste da cidade, sofreu uma profunda remodelação durante as duas décadas desse século 21.
O sul da cidade, onde estão o templo e o Parque do Céu, e que sempre foi, e continua a ser, uma zona comercial de extrema importância de Pequim, além de zona residencial tradicional, tem sido a área mais organizada para ser o ponto estratégico dos transportes inter-regional e internacional da capital da China.
É no sul de Pequim, por exemplo, que estão localizados a Beijing Nan Zhan, a maior estação ferroviária de trens de alta velocidade (os trens-bala) da capital chinesa, e que é o maior centro de transportes inter-regionais da cidade (é dessa estação que partem a maior parte dos trens-bala que ligam Pequim às demais províncias da China).
E é também no sul de Pequim que fica o recém inaugurado aeroporto de Daxing, que foi desenhado pela arquiteta Zaha Hadid (é atualmente o maior aeroporto em operação no mundo).
Pequim, aliás, é a única capital do planeta que tem dois aeroportos gigantescos (na linha da tradição da “Grande Muralha” e do “Grande Canal”, ou seja, das grandes obras de construção civil que caracterizam a capital da China), e que foram desenhados por dois dos maiores nomes da arquitetura contemporânea: Daxing, projeto de Zaha Hadid, e o aeroporto internacional de Pequim, projeto de Norman Foster.
O grande desenvolvimento econômico da China desde 1989 fez com que Pequim passasse por uma remodelação e reurbanização profunda, o que, por sua vez, fez com que a capital da China se tornasse um grande laboratório para a construção de algumas das mais extraordinárias obras da arquitetura contemporânea.
Vários dos mais talentosos e mais renomados arquitetos contemporâneos têm obras icônicas na cidade, e destacam-se entre essas obras o edifício da CCTV do arquiteto holandês Rem Koolhaas; o Lynked Hybrid do arquiteto estadunidense Steven Holl; o Teatro Nacional da China do arquiteto francês Paul Andreu; o Estádio Olímpico (conhecido como Ninho do Pássaro) dos arquitetos suíços Herzog & Meuron, a partir de um desenho do artista Ai Wei Wei; o Centro de Artes de Pequim do arquiteto alemão Büro Ole Scheeren; o Phoenix Center do arquiteto chinês Shao Weiping e o Beijing Parkview (um shopping center feito com princípios de arquitetura ecológica e sustentável) do arquiteto chinês, radicado em Hong Kong, Wiston Shu.
E, somado a isso, há em Pequim algumas obras icônicas da arquiteta britânica de origem iraquiana Zaha Hadid, que é a autora, além do aeroporto de Daxing, de três outros grandes projetos na cidade: o Galaxy Soho, o Leeza Soho e Wanjing Soho (Soho é o nome da construtora chinesa responsável pela edificação e pela administração dos prédios mencionados).
Esse conjunto imenso de edifícios da arquitetura contemporânea transformou a capital da China em um polo de turismo inusitado: o dos estudantes e professores de arquitetura que visitam a cidade para estudar, conhecer e verificar esses edifícios que se tornaram tão icônicos quanto alguns dos melhores projetos de Oscar Niemeyer em Brasília nos anos 1960 e 1970.
Carlos Alberto Shimote Martins morou em Pequim durante três anos e meio. Foi professor de Português, Cultura Brasileira e Literatura Brasileira na Universidade de Estudos Internacionais de Pequim (Beijing International Studies University/Erwai), no período de maio de 2010 a agosto de 2013. Foi o leitor escolhido para atuar naquela universidade como parte do Programa de Leitorado do Ministério das Relações Exteriores (MRE/Itamaraty) e Ministério da Educação (MEC/Capes).