Empreendedorismo das plataformas remonta aos primórdios do capitalismo da era mercantilista
22 de março de 2022 - 20h30
Capitalismo, o Velho e o Novo
Por Luiz Gonzaga Belluzzo
O Velho e sempre novo Capitalismo não é o capitalismo envelhecido, mas, sim, aquele reinvestido em sua natureza, revigorado nas forças da competição desenfreada entre mamutes empresariais e fundos financeiros que operam em múltiplos mercados.
Cada vez mais empenhados em capturar mais valor dos empreendimentos já existentes, os mastodontes multiplicam as fusões e aquisições, ocupam os espaços globais, aceleram o tempo de produção, dispensam trabalhadores e achatam os salários.
Nessa toada, amesquinham os espaços nacionais e enfraquecem o poder aquisitivo da massa de trabalhadores informais, enquanto homens e mulheres de carne e osso insistem em sobreviver.
Em sua reinvenção, o Velho Capitalismo dissipou as esperanças do capitalismo fordista dos Trinta Anos Gloriosos. O período glorioso alimentou a concepção, ao mesmo tempo solidária, generosa e ilusória do conúbio virtuoso entre as duas formas do capitalismo: 1) o capital produtivo, em que homens e máquinas se combinam para a produção de bens e serviços; e 2) o capital “improdutivo”, que não produz mercadorias, mas gera rendimentos “fictícios” para seus proprietários.
No renascimento do Velho Capitalismo, essas formas revelam que não são opostas, senão contraditórias: desenvolvem-se como dimensões do mesmo processo que subordina a produção dos meios materiais para a satisfação das necessidades ao império da acumulação de riqueza monetária.
Ao derrubar as fronteiras erguidas pelas políticas destinadas a proteger a produção e o emprego, o Velho Capitalismo soltou o demônio monetário que carrega na alma.
No livro Phenomenology of The End, Franco Bifo Berardi desvenda essas transformações: Em suas etapas mais recentes, a produção capitalista reduziu a importância da transformação física da matéria e a manufatura física de bens industriais, ao propiciar a acumulação de capital mediante a combinação entre as tecnologias de informação e a manipulação das abstrações da riqueza financeira. A informação e a manipulação da abstração financeira na esfera da produção capitalista tornam a visibilidade física do valor de uso apenas uma introdução na sagrada esfera abstrata do valor de troca.
A inteligência artificial, a internet das coisas, a robotização, têm sido incansáveis em sua faina de metamorfosear a materialidade da produção na imaterialidade das formas financeiras.
Os empreendimentos de plataforma encarnam, hoje, a modalidade mais aperfeiçoada do Velho Capitalismo.
Além dos gigantes numéricos, como Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft, as plataformas ocupam outros setores como finança, hotelaria, transportes, comercialização e distribuição de mercadorias, entrega de comida a domicílio. Aí estão em pleno vigor, as plataformas dos Ubers e dos iFoods da vida.
Os trabalhadores autônomos, empreendedores de si mesmos, assumem os riscos da atividade – investimento, clientela –, mas estão submetidos ao controle da plataforma na fixação de preços e repartição dos resultados.
Essa organização do trabalho foi predominante nos primórdios do capitalismo manufatureiro da era mercantilista, sob a forma do “putting-out system”. Os comerciantes forneciam a matéria prima para os artesãos “autônomos”, que estavam obrigados a entregar o produto manufaturado em determinado período de tempo.
No capitalismo das plataformas, a utopia do tempo livre se transmuta na ampliação das horas trabalhadas, na intensificação do trabalho, no endurecimento da concorrência, enriquecimento de poucos, na precarização e empobrecimento de muitos, na bolha cada vez mais inflada dos trabalhadores por conta própria.
Em seu predomínio pós-fordista, já perscrutou Michel Foucault, o mercado, “poder enformador da sociedade”, redefiniu os indivíduos-sujeitos. Os valores da livre concorrência transformaram todos e cada um em “empreendedores de si mesmos”, proprietários, sim, do seu “capital humano”.
Para Marco d’Eramo, “A primeira consequência dessa abordagem é que somos todos proprietários, do trabalhador mexicano ao mineiro sul-africano e ao banqueiro de Wall Street. Mas o que exatamente nós possuímos, quando, por exemplo, não possuímos dinheiro ou objetos materiais? Nós mesmos somos donos: ou seja, nós mesmos constituímos nosso próprio capital. Todo mundo é dono de si mesmo, ou seja, seu próprio capital humano: dono de sua própria empresa, ou seja, de si mesmo, que investe seu capital: daí a noção de capital humano: ‘A especificidade do capital humano é que ele faz parte do homem. É humano porque está incorporado no homem, e capital porque é uma fonte de satisfação futura, ou ganhos futuros, ou ambos’”.
O capital humano é para a economia como a alma é para a religião: como de acordo com as várias crenças, cada pessoa tem uma alma – você não pode vê-la, mas há – então em cada um de nós há um “capital” invisível e imaterial, que aconteça o empreendedor individual de si mesmo. Somos todos capitalistas, portanto, da lava-louças imigrante ao oligarca russo.
Mas, mesmo que os proletários sejam capitalistas, mesmo que sejam apenas do capital humano, então não há, por um lado, o capitalista que compra o trabalho do proletário e, por outro, o proletário que vende seu trabalho para o capitalista.
Há apenas dois capitalistas que derivam de forma diferente uma renda de seu capital (um do capital econômico, o outro do capital humano). Não há mais exploração do trabalhador pelo capitalista, mas há a auto-exploração do eu trabalhador-capitalista.
Todas as categorias conceituais tradicionais, como exploração e alienação, estão desaparecendo e seu cancelamento prejudica, em tese, o movimento operário, cuja derrota vai muito além do contingenciamento histórico devido ao desaparecimento dos partidos e sindicatos que o representam politicamente.
É uma derrota teórica e conceitual, porque nessa nova visão da economia, o trabalho se torna uma renda de capital. Na Espanha, já foi dito “todos caballeros”, agora, nos melhores mercados possíveis, dizemos “todos capitalistas”!
A luta de classes não está mais lá, simplesmente porque não há duas classes diferentes, só existem “empreendedores capitalistas”.
Na realidade real, o capital humano, cultivado com os empenhos da educação e da formação profissional, sofre forte desvalorização nos mercados de trabalho contaminados pela precarização, pelo empreendedorismo das plataformas e pela continuada perda da segurança, outrora proporcionada pelos direitos sociais e econômicos.
O poder e a riqueza dos verdadeiros capitalistas são reforçados mediante a concentração empresarial, que promove a rápida expansão dos rendimentos derivados, primordialmente, do exercício da propriedade de ativos tangíveis e intangíveis.
Isso demonstra que o avanço do patrimonialismo não é uma deformação da Nova Economia, senão a expressão necessária de suas formas de apropriação da renda e da riqueza. Como já foi dito, o capitalismo “social” e “internacional” do imediato pós-guerra transfigurou-se no capitalismo “global”, “financeirizado” e “desigual”.
Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor de Valor e Capitalismo; 0 Capital e suas Metamorfoses; A Escassez na Abundância Capitalista e Dinheiro – O Poder da Abstração Real.