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HIPOCRISIA

Estados Unidos anexou quase quatro Ucrânias em território que tomou do México

13 de março de 2022 - 02h10

Quando pensar na Ucrânia, lembre-se do Álamo!

 

Por Daniel Barreiros

No início do século 19, colonos norte-americanos cruzavam o Mississipi em direção ao oeste, e muitos deles adentravam a região de Tejas, no norte do território da República do México. Foram atraídos para a região pelas possibilidades econômicas, em especial pela criação de gado.

Na mesma época, a região da Califórnia, também nos limites setentrionais do território mexicano, contava com população escassa, de cultura ibero-americana, e cujos laços com a Cidade do México eram parcos. Anglo-saxões já estavam bem estabelecidos nas principais povoações californianas no início dos anos 1800, e mantinham ali uma economia ainda pobre, mas com potencial de crescimento. 

Stephen Austin, que dá nome à capital do atual Estado do Texas, estabeleceu em 1821 a primeira povoação “estrangeira” digna de nota neste território mexicano, formada por colonos ingleses e norte-americanos. Para as elites escravocratas dos Estados sulistas da União, as terras no Texas eram um chamariz, algo que fez James Lowell, crítico ferrenho, afirmar que aquilo não passaria de mais uma “pocilga” para “enfiar mais escravos”.  

Não tardou para que em 1835 esses colonos estrangeiros proclamassem a independência, movendo então uma guerra contra o governo do México. Vitoriosos, deram origem à República do Texas, e tornaram aquele território um forte atrativo para mais colonos vindos dos Estados Unidos. 

A ideia de anexar a República do Texas aos Estados Unidos passava pelas mentes dos formuladores de política em Washington, mas alguma cautela foi exercida por uma década. Ao final dela, contudo, prevaleceram o messianismo do Destino Manifesto, a ética do progresso e a afinidade cultural entre texanos e norte-americanos.

A crença no direito inalienável dos anglo-saxões de expandirem-se pelo oeste americano e na necessidade imperiosa de “desenvolver” territórios “atrasados” falou mais alto, e o Texas foi aceito como um Estado da União em 1845.

Havia ainda um dilema de segurança envolvido: Washington se alarmava com a ubíqua presença de interesses britânicos na América Central, apesar da Doutrina Monroe de 1823, e temia assim que Londres pudesse explorar a seu favor as fragilidades geopolíticas do Texas, um país independente entre os Estados Unidos e o México, transformando o governo de Austin em um protetorado britânico. 

O estranhamento entre Washington e a Cidade do México foi crescendo após a anexação do “Estado da estrela solitária”, especialmente em decorrência de questões de fronteira, o que acabou levando à invasão do território mexicano por tropas norte-americanas no verão de 1846. Os ianques só pararam quando a Cidade do México foi conquistada e a bandeira dos Estados Unidos tremulou sobre o “Palácio de Montezuma”, expressão, aliás, que faz parte até hoje do hino dos Fuzileiros Navais estadunidenses.

Durante a guerra, foi a vez dos colonos da Califórnia se insurgirem, dando origem a um segundo território separatista, a República da Bandeira do Urso (Bear-Flag Republic), também incorporada à União. E se não bastasse, o Tratado de Guadalupe Hidalgo de 1848, que encerrou a Guerra Mexicano-Americana, garantiu aos Estados Unidos a conquista dos territórios entre a Califórnia e o Texas, e que hoje são parte dos estados de Utah, Nevada, Novo México, Colorado, Arizona e Wyoming.

Enfim, tratou-se de uma guerra, em parte do imaginário político norte-americano, justificada pela defesa da autodeterminação de californianos e texanos perante uma nação inimiga “despótica” e “atrasada”. 

O patrocínio do governo de Washington às repúblicas separatistas da Califórnia e do Texas – justificado por motivos estratégicos, étnico-culturais e econômicos; a guerra de ocupação movida contra o México; a incorporação dessas duas repúblicas à União e o saldo do conflito resultaram em uma adição de 2,4 milhões de quilômetros quadrados ao território soberano dos Estados Unidos da América.

Isso equivale a, aproximadamente, quatro Ucrânias. Não me refiro à província de Donbass, e muito menos às frações de Donbass reclamadas pelos separatistas de Donetsk e Lugansk. Dois milhões e quatrocentos mil quilômetros quadrados; quatro vezes, aproximadamente, o território de toda a Ucrânia, de 603 mil km2.

Não li ou ouvi no âmbito da atual crise europeia qualquer protesto, ainda que tardio, contra essa guerra de anexação hipócrita movida pelos Estados Unidos no século 19. Alegar que “já faz muito tempo” não vale: é comum que a imprensa ocidental ampare bandeiras de reparação histórica a favor de minorias, para as quais o tempo decorrido não é um critério. Se as mazelas do racismo não prescrevem, tampouco as do imperialismo.

Não que se busque justificar nesse breve texto as perdas humanas, a dor e a barbárie produzidas, seja pela invasão russa, seja pelas controversas ações militares do exército ucraniano contra as regiões separatistas de Donbass desde 2014 (algo, aliás, que é solenemente ignorado pela CNN e suas tributárias).

Nem se quer aqui apontar os “verdadeiros” culpados pela tragédia que se desenrola no Leste Europeu. Simplismos e reflexão geopolítica não combinam bem, embora seja quase que inevitável que se pense com o fígado quando choques identitários e intergrupais estejam em pauta. Trata-se de um problema de natureza evolucionária, algo que pretendo trazer-lhes em textos vindouros. 

O que se pretende ressaltar aqui é que pau que bate em Chico, bate em Francisco; ou deveria. A cobertura jornalística ocidental do conflito Rússia-Ucrânia tem ganhado contornos de histeria e de caça às bruxas, cumprindo assim um papel bem colocado de legítima propaganda, ao criar um contexto de “guerra justa” e santificar os esforços da “democrática Kyiv” em banir os “facínoras tártaros” de suas terras. 

Nada menos histriônico e unilateral aparece na mídia russa, ressalte-se. O que cumpre perguntar aqui é por que nesse momento a imprensa mundial, com seu esperado papel de informar e trazer à reflexão, não está a escrutinar todas essas guerras santas, autorizadas seja em nome de deus, da liberdade, da democracia, da ameaça das armas de destruição em massa ou de uma suposta “desnazificação” de um Estado vizinho? 

A memória histórica no Ocidente irá sacramentar a vilania de Moscou e a imaculada resistência ucraniana, sem nunca levar em conta que os russos alertaram insistentemente para os riscos de segurança representados pela eventual expansão da Otan sobre a Ucrânia, que as potências ocidentais ignoraram todos os apelos russos, e que agora usam os defensores de Kiev como bucha de canhão para garantir os interesses geopolíticos da aliança ocidental na região.

Não que inexista um potente contencioso entre russos e ucranianos, e que um povo deva furtar-se à defesa do território que reclama ser seu. O fato é que a memória que se está a construir pelos veículos de imprensa-propaganda-de-guerra presta um desserviço civilizacional, e não muito distante disso estará a própria historiografia ocidental no futuro próximo.

Não foram Nevins e Commager, decanos da história política de cunho liberal norte-americana, que pintaram a Guerra Mexicano-Americana como um “conflito rápido e brilhante”, uma justa reação de uma nação de homens livres contra um governo “ineficiente, corrupto e tirânico”?

Não foram eles que viram no suplício de Crockett, Bowie e Travis no Álamo¹  a verdadeira encarnação moderna dos trezentos de Esparta em Termópilas² ? Não tardará então para que a efígie de Zelensky, o comediante tornado estadista, estampe as capas de livros de história em meio a títulos cheios de heroísmo e frases inspiradoras. 

 

1. A Batalha do Álamo, ocorrida entre fevereiro e março de 1836, foi um episódio da guerra de independência do Texas, no qual uma guarnição texana foi sitiada por 13 dias pelo exército mexicano na Missão de Santo Antônio de Valero, resultando na morte de quase todos os seus ocupantes. Personagens envolvidos na batalha do Álamo, como os comandantes William Bowie e James Travis, e o aventureiro Davy Crockett, assumiram status de heróis civilizatórios no imaginário popular norte-americano. Crokett foi interpretado por John Wayne no clássico de Hollywood Alamo, de 1960.
2. A Batalha de Termópilas teria ocorrido em 480 a. C., entre as forças militares das cidades-estado gregas reunidas sob comando de Leônidas de Esparta, contra o exército do Império Aquemênida persa. Como os texanos no Álamo, todos os combatentes do lado grego teriam sido eliminados após uma resistência heroica, ainda que suicida.

 

Daniel Barreiros é doutor em História pela UFF (Universidade Federal Fluminense), professor do programa de pós-graduação em História Comparada da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), alumni do Study of the United States Institutes for Scholars (U.S. Foreign Policy, University of Delaware), e vice-presidente da International Big History Association.


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