Tráfico sexual de mulheres aumentou durante pandemia; vítimas são pobres
08 de março de 2022 - 20h59
8 de março e a mercadoria-mulher
Por Patrícia Rodrigues Chaves da Cunha
“A carne mais barata no mercado é a carne negra” (Elza Soares)
No dito “mês das mulheres”, por simbolizar suas lutas e homenagear as tantas sacrificadas ao longo da história, o tráfico de mulheres representa o ápice da violência que a sociedade capitalista tem lhes dirigido.
O capitalismo vem impulsionando a comercialização internacional de pessoas para fins diversos (trabalho escravo, tráfico de órgãos etc.), mesmo que as sociedades os classifiquem como crime internacional.
O tráfico de pessoas é legalmente tipificado como um crime nacional através do ordenamento de 2016 (Lei nº 13.444).
Segundo relatórios do Ministério da Justiça e Segurança Pública, produzidos em parceria com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes, quando o tráfico se volta para mulheres e meninas a exploração sexual é a principal atividade-fim detectada.
É possível observar que o processo de desumanização e objetificação, construídos ao longo da história de opressão feminina em nossa sociedade, permitiram a materialização das mulheres em mercadoria.
Só recentemente as políticas públicas ganharam força com a interlocução entre Estado e sociedade, pressão social e compromissos internacionais. E com a assinatura pelo Brasil do Protocolo de Palermo (2004), que trata especificamente do Tráfico Internacional de Pessoas na ONU (Organização das Nações Unidas).
Esse compromisso do país deu origem aos Planos Nacionais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas I (2006-2011), II (2011-2016) e III (2018-2022).
A decisão de criar uma política pública para o enfrentamento ao tráfico de pessoas gerou novas instituições (leis) e promoveu importante conhecimento.
Além dos resultados obtidos no combate ao tráfico em si, observa-se a intensa participação de uma rede de atores governamentais e civis, a cooperação entre polícias e de diferentes ministérios e secretarias governamentais.
A organização de uma rede de atores, a produção e organização de informações sobre esse tipo de crime são algumas das contribuições positivas para a sociedade brasileira.
No Brasil, a pandemia do coronavírus incrementou a atividade econômica em áreas específicas (hospitalar, farmacêutico, comércio eletrônico, agronegócio etc.), enquanto trouxe grandes prejuízos para outras áreas.
Potencializou, ainda, a realidade de violência doméstica cotidiana já vivenciada em nossa sociedade, que registrou com o lockdown, o desemprego e o aumento da miséria recordes de feminicídios.
Porém essa não foi a única forma de violência crescente que vivenciamos. Por mais que saibamos que há defasagem dos dados diante da realidade, o relatório do Ministério da Justiça (2017-2020) aponta para um aumento no tráfico de mulheres para fins de exploração sexual durante a pandemia, uma vez que o número de processos registrados passa de 21 em 2017, para 31 em 2019, e para 29 em 2020.
Apesar de todas as barreiras de circulação nacionais e internacionais, não cessaram as lucrativas práticas de tráfico de mulheres para fins de exploração sexual nesse período, como atesta reportagem de abril de 2021 sobre o tráfico de cerca de 200 mulheres para fim de exploração sexual.
A vexatória lógica expressa pelo deputado paulista Arthur do Val, conhecido como “Mamãe Falei” (MBL-Podemos), na Ucrânia durante a invasão russa em que afirmou que as mulheres do país “seriam fáceis porque são pobres”, reflete a naturalização de uma mentalidade e realidade que se aplica ao Brasil há muito tempo.
Compondo uma cultura sexista, a objetificação e desumanização das mulheres faz com que as brasileiras sejam visadas pelo tráfico de pessoas como mercadoria disponível.
Constituímos um país exportador de mulheres para serem escravizadas, que vêm sendo aliciadas, enganadas, vendidas e exportadas como uma mercadoria. Essa atividade ilegal e desumana alimenta um mercado mais lucrativo que o tráfico de drogas.
O perfil das mulheres brasileiras vítimas de tráfico destaca sua vulnerabilidade em razão da pobreza e da raça, pois a maioria são negras.
Um conjunto de características que se encaixa no que Saffioti (2000) definiu como interseccionalidades, que congregam três contradições sociais fundamentais: a de gênero, a de raça/etnia e a de classe.
A mentalidade opressora que não reconhece direitos humanos tem em sua raiz uma cultura que ainda não reconhece a condição humana para parte da sociedade brasileira.
A herança escravocrata deixa seus reflexos e se reinventa no tráfico de mulheres para fins de exploração sexual. As políticas públicas, mesmo sendo importantes, têm sido tímidas no combate a essa mentalidade, uma vez que se vem restringindo às questões operacionais e nunca deram prioridade às mulheres como principais vítimas do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual.
Uma vez que muitas das ações da Polícia Federal são decorrentes de denúncias da população através de ferramentas como o disque 180 ou disque 100, campanhas educativas para o combate a essa mentalidade e transformação cultural são fundamentais para nos retirar da lista de país exportador.
Porém, vivenciamos no Brasil um embate civilizatório onde o combate às práticas discriminatórias vem sendo questionado.
A disputa de poder no país passa pela negação e evidência das contradições sociais de gênero, de raça/etnia e de classe. A luta das mulheres as tem transformado em alvos preferenciais de uma sociedade que degenera.
Essa luta se dirige ao questionamento das bases do poder opressor sobre elas, pois não são simples questões de vaidade, ignorância ou de masculinização das mulheres, e sim de sobrevivência.
Cada dia em que a emancipação feminina vem sendo questionada no país aumenta a resistência e a violência contra elas.
A transformação do olhar sobre o papel a ser desempenhado pela mulher na sociedade e pela mudança de mentalidade que promova uma cultura de humanização de todas as mulheres, torna-se essencial para a promoção da coibição à prática de tráfico de mulheres.
Não é mais possível que o avanço do capitalismo e o aprofundamento da pobreza e dos costumes discriminatórios no Brasil nos transformem em objetos a serem comercializados no mundo global.
A luta para uma sociedade que valorize o ser humano não é apenas das mulheres, é necessária muita ação para que o 8 de março possa comemorar que a mulher brasileira não seja mera mercadoria.
Patrícia Rodrigues Chaves da Cunha é cientista política e professora do Instituto de Filosofia, Sociologia e Política da UFPel (Universidade Federal de Pelotas) e Coordenadora do grupo de pesquisa Democracia e Políticas Públicas