Duzentos anos depois, Independência ainda não chegou para todos no Brasil
06 de setembro de 2022 - 14h27
Independência, Independências
Por Marcos Silva
Entendemos habitualmente a palavra “Independência”, no Brasil, como algo associado a uma data, 7 de setembro de 1822, a uma imagem, o quadro “Independência ou Morte”, de Pedro Américo, e a alguns personagens, como Pedro de Alcântara e seus auxiliares diretos, brancos e do sexo masculino. Pensamos na formação do Estado nacional brasileiro como se fosse invenção do Brasil e disso deduzimos o nascimento de sociedade e nação brasileiras. O Estado surge como régua e compasso do problema a partir de governo e soldados.
É um ângulo de compreensão, claro. Será o único possível?
A questão é organizada de forma a excluir a maioria da população de seus quadros: mulheres, negros, indígenas, pobres. Aquele projeto era de homens proprietários, brancos. Fica faltando o sujeito que se tornou independente, que consiga ir além daqueles limites tão rígidos: o Brasil, sua população ampliada, com diferentes projetos e cores.
A Independência de 1822 ocorreu depois da Revolução Francesa (1789) mas, ao invés de Direitos Humanos, consolidou a Escravidão; ao invés de separação entre Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, optou pela criação do Poder Moderador, exercido pelo monarca, que significava dar a última palavra nas disputas políticas para o imperador. Independência e monarquia, no Brasil, inventaram também esse extremo centralismo governamental autoritário.
Certamente, a condição de país independente se opõe à experiência de ser colônia, o que é mais que um espaço visual no mapa, é um coletivo de homens e mulheres em diferentes condições de vida – escravos, índios e pobres também eram Brasil. As chamadas “inconfidências” foram marcadas por mais que aquele grupo restrito da elite – na Bahia, como se sabe, escravos e livres pobres tiveram participação na tentativa de separar-se de Portugal. E a base econômica posterior a 1822 (latifúndio escravista) é um convite a pensar que nada mudou.
É melhor não aceitar esse convite, um Estado nacional pode mudar muita coisa, mas não mudou tudo. E outras pequenas independências, em Educação, Cultura e relações sociais, surgiram lentamente, não necessariamente por obra e graça do Estado.
Vale a pena, portanto, definir de qual Independência falamos. Aquela de 7 de setembro de 1822 – monarquista, escravista, latifundiária, dependente de novos países, com ensino superior e fundamental limitadíssimo – é a mais lembrada.
Em contrapartida, a permanente invenção da sociedade brasileira, sua Cultura, o universo de direitos humanos, continuou e continua até hoje.
A independência de 1822, tornando o Brasil o único país monárquico das Américas, que manteve a escravidão até o penúltimo ano da monarquia (1888), é uma evidente insuficiência e agressão contra seres humanos que não pertencessem à elite dominante. Os escravos não se mantiveram inertes diante disso, lutaram, negociaram, reinventaram-se e continuaram a fazer isso, ainda mais quando libertos e junto com imigrantes. A sociedade é uma invenção também dos que não são privilegiados.
O sesquicentenário da Independência monárquica, em 1972, foi festivamente comemorado pela ditadura de então como forma de consolidar ainda mais seus assustadores poderes – arrocho salarial, prisões arbitrárias, torturas de presos, censura generalizada.
Seu bicentenário, em 2022, corre o risco de ser apropriado pela atual ditadura brasileira para justificar agressões governamentais contra Saúde, arrocho salarial e desemprego, seres humanos sem teto, miséria generalizada.
Ao invés de festa vazia, é importante repensarmos sobre tantas outras Independências urgentes para a maioria da população brasileira: direitos sociais, dignidade cotidiana, pão e terra.
Precisamos inventar a Independência para a maioria. Precisamos assumir esse poder para nós, que somos o Brasil real.
Marcos Silva é professor do Departamento de História da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas) da USP (Universidade de São Paulo).