Domínio do Ártico é trunfo importante da Rússia contra Otan e Estados Unidos
10 de junho de 2022 - 11h59
O corredor marítimo do Norte, mas podem chamar de Polar Silk Road
Por James Onnig
No ano de 1982 foi realizada a Convenção das Nações Unidas Sobre o Direito do Mar em Montego Bay na Jamaica. Foi um avanço na agenda internacional que imbrica temas de soberania, emergência ambiental e regras para exploração dos ambientes marinhos.
Mesmo não sendo o foco, a Convenção tinha uma preocupação com a preservação das regiões polares e alertava para a necessidade do uso de dados científicos para organizar e fiscalizar a navegação e exploração dessas áreas. O processo de expansão do capitalismo na segunda metade do século 20 já exercia essa pressão.
Nos anos de 1980 povos originais das altas latitudes ampliaram suas lutas na defesa das terras e de seu modo de vida. Os Sámis do extremo norte da Europa (Suécia, Noruega, Finlândia em especial), os Inuits do Canadá, os Atabascos do Alasca, os Aleútes das Ilhas Aleutas, já vinham protestando por décadas contra a usurpação dos seus territórios.
Dessas posições na defesa do equilíbrio ambiental, emergiu em 1991 um importante documento chamado Arctic Environmental Protection Strategy ou AEPS, com apoio do Canadá e Finlândia. Além deles aderiram Islândia, Noruega, Suécia, União Soviética (Rússia), Estados Unidos, Dinamarca e as organizações representativas dos povos originais do Ártico.
A meta era criar um protocolo comum de defesa da fauna, flora, águas e uso sustentável dessa imensidão gelada do globo terrestre. Essa iniciativa catalisou a formação do Conselho do Ártico por meio da Declaração de Otawa em 1996.
Gradualmente um complicador entrou em cena: o aquecimento global. Sucessivos alertas feitos pela comunidade científica apontavam para o derretimento das calotas polares.
Se por um lado isso representa uma perigosa fronteira para a sobrevivência da humanidade, pelo lado do capitalismo selvagem, isso representa oportunidades de lucros; uma calota polar mais fina barateia a exploração de petróleo em grandes profundidades. Isso não passou despercebido pela Rússia.
Nos anos de 1990 Moscou assistia uma drástica diminuição de sua influência geopolítica. Lembremos que Lituânia, Letônia e Estônia não aderiram a Comunidade dos Estados Independentes (CEI) criada para manter os vínculos entre as ex-repúblicas soviéticas.
Além disso, em 1997, Geórgia, Ucrânia, Azerbaijão e Moldávia, criaram a G.U.A.M, um arranjo diplomático consultivo que sinalizava que a Rússia não seria a única parceria desses países no futuro. Para os estrategistas russos isso era uma grande preocupação.
Quando Putin chegou ao poder em 2000, se iniciou um reposicionamento do país na geopolítica. Em parte, isso foi possível pela valorização das commodities impulsionadas pelo crescimento da economia chinesa.
O preço do barril de petróleo em 2001 era de US$ 25,32 e dez anos depois o barril chegou a US$ 128,00. A Rússia, que sempre esteve entre as maiores produtoras de petróleo e gás do mundo, aplicou esses recursos na modernização de suas Forças Armadas e na ampliação do poder comercial de suas empresas.
Neste contexto os russos incorporaram um milhão de quilômetros quadrados de águas geladas do Ártico em seus mapas em 2001. Pelas exigências da Convenção de Montego Bay é necessário provar que a plataforma continental ártica, ou seja, o leito do subsolo marinho, é um prolongamento geológico de seu território para legitimar a perfuração petrolífera.
Antes mesmo que essas pesquisas ficassem prontas, Moscou enviou em 2007 mini-submarinos não tripulados que fincaram uma bandeira russa de titânio, debaixo da calota polar, a 4.300 metros de profundidade. As reações dentro do Conselho do Ártico foram as piores.
Um terço do território russo fica no Círculo Polar Ártico. Além de gás e petróleo, o derretimento também está ampliando a possibilidade de navegação. Lógico que isso continua requerendo o uso de navios quebra-gelo e a indústria naval russa já está a todo o vapor produzindo esse tipo de embarcação agora com propulsão nuclear.
Entre 2014 e 2015 o Alto Comando Russo incorporou definitivamente a região do Ártico na Nova Doutrina Militar e na Estratégia de Segurança. Declararam oficialmente que devido a grande extensão e por considerarem que o todo território russo está sob ameaça da Otan, o país deve estar preparado para responder de imediato, e não somente com armas, mas sim também com ações de inteligência, a qualquer risco e assim salvaguardar sua soberania seja em terra, mar e gelo por assim dizer.
Dessa forma foi se desenhando geoestrategicamente o Corredor Marítimo Norte que passou a ser um trunfo para o governo russo. Gradualmente o transporte pelo Ártico vem crescendo. Essa rota reduz pela metade distâncias percorridas por navios cargueiros e petroleiros que passam pelo Atlântico Norte – Suez – Índico.
A Rússia teria nas mãos o controle dessa passagem polar e os poderosos quebra-gelo seriam regiamente pagos para abrir caminho em ambos sentidos: Europa–Ásia e Ásia–Europa.
Os canadenses e dinamarqueses (Groenlândia) têm ambições semelhantes por outro caminho através de seus litorais.
Não foi à toa que a China se incorporou ao Conselho do Ártico como observadora em 2013 e desde 2018 tem uma política oficial para a região defendendo uma administração e controle mais global para essa imensidão.
Beijing vem colaborando nos comitês científicos do Conselho e espera que a parceria com Rússia em outros campos se aprofunde neste tema também. O governo chinês enxerga as vantagens competitivas através da navegação da região.
Certamente essa é a mesma visão nutrida por Moscou e pouco importa o que pensam a Otan e os Estados Unidos. Creio que Putin não vê problemas em chamar a rota carinhosamente de Polar Silk Road.
James Onnig é professor de Geopolítica da Facamp (Faculdades de Campinas)