Hegemonia estadunidense impõe visão deturpada sobre Coreia do Norte ao Ocidente
27 de maio de 2022 - 18h20
A Coreia do Norte, a Covid e a desinformação
Por Bernardo Muratt
O mais recente país a ter um grande surto de Covid-19 é a Coreia do Norte. À primeira vista os principais portais dos conglomerados internacionais de notícias avisam que a situação da pandemia no país ficou tão incontornável, que caberia ao governo admitir pois estaria “difícil de esconder”.
Esse tipo de explicação pode nos soar plausível ao nível da aparência. Todavia, acabamos por esquecer que o país abriga escritórios da OMS e diversos corpos diplomáticos que não relataram nada do tipo.
A República Popular Democrática da Coreia ou Coreia do Norte, conhecida pelas vozes conservadoras da grande mídia internacional como um dos “países mais fechados do mundo”, e que a partir dessa pecha é passível de qualquer sandice que gere consternação. Essas caracterizações servem para obscurecer as relações interestatais na Península.
O país tem essa característica menos por atributos próprios, e mais pelo contexto internacional em que se encontra, desde a sua conformação política a partir da Revolução de 1948.
A quantidade imensa de adjetivações absurdas que o país recebe, servem a um propósito que é muitas vezes relevado: a Península Coreana é um ponto geopolítico estratégico fundamental na manutenção da política imperialista estadunidense na região.
O conflito entre Sul e Norte trouxe à tona diversas marcas que estariam na política e na retórica estadunidense para os chamados “rogue states”¹ (aqueles que buscam uma alternativa soberana frente às demandas do imperialismo e neocolonialismo).
Se repararmos, todas as ações da Coreia Popular no plano internacional são geralmente caracterizadas como absurdas, arcaicas e eivadas pela mentalidade da Guerra Fria. Isso obscurece o fato de que há um domínio e uma ameaça constante à soberania desse país desde a sua fundação.
O país segue uma doutrina política e filosófica própria conhecida como “Juche”, que pode ser traduzida como autossuficiência. Essa é a base do pensamento nacional norte-coreano e de sua ação política e foi um dos motivos para a não adesão do país ao Comecon².
Desse modo possibilitou o uso de uma diplomacia pendular com a China e a União Soviética. Essa manobra internacional foi o que durante muito tempo manteve a Coreia Popular com um padrão de vida mais elevado do que seu vizinho do Sul até o início dos anos 1980.
O país contava com soberania alimentar plena até os anos 1990 e, até hoje conta com um padrão de vida e organização invejável para a maioria dos Estados asiáticos. O fim da União Soviética acarretou um agravamento das sanções e suas consequências.
A Coreia do Sul, que foi uma ditadura militar até o início dos anos 1990 – onde é proibido por lei até hoje (através do National Security Act, de 1948) mencionar positivamente qualquer material referente ao Partido dos Trabalhadores da Coreia do Norte, à política Juche, além de ter proscrito movimentos comunistas – por sua vez, é tratada pela mídia ocidental como um oásis democrático e progressista.
Não obstante, a maior fonte de notícias referentes à Coreia do Norte vem de think-tanks e ONGs da Coreia do Sul, encabeçados pelos mesmos personagens formados no Ocidente ou anticomunistas fervorosos como o caso de Andrei Lankov, professor de Relações Internacionais na Coreia do Sul.
Além disso, é importante salientar que a maior base militar estadunidense fora do território dos Estados Unidos está na Coreia do Sul.
O domínio dos Estados Unidos na região e sua constante interferência em assuntos políticos e militares em Seul é relevado.
Portanto, resumirmos as ações da Coreia Popular a simples mandos e desmandos de um ditador sedento de poder e com uma aparente ojeriza a tudo que é estrangeiro é um caminho fácil para não compreendermos a real complexidade da situação.
É um país que sofre sanções econômicas severas e ostensivas há mais de 70 anos. Um país que está em guerra com um vizinho, cujas forças são comandadas em última instância pelos Estados Unidos, o maior poder militar e econômico do globo.
A nova luta contra a Covid em seu próprio território, passa pela mesma situação que existe na Península Coreana desde o armistício da Guerra em 1953, sob imensa pressão dos norte-americanos e do Ocidente.
A situação não é fácil em um país constantemente atacado. Para compreendermos os próximos passos de Pyongyang, não devemos nos basear por aqueles que sempre foram inimigos da revolução norte-coreana.
1) Em português algo como “Estados párias”, países que seriam uma ameaça à paz mundial e aos direitos humanos. Trump reiterou esse termo, já em desuso, em 2017.
2) Conselho para Assistência Econômica Mútua, organização econômica internacional encabeçada pela União Soviética, responsável por organizar as economias dos países socialistas do Leste Europeu e de Cuba. A Coreia do Norte foi apenas observadora nesse acordo.
Bernardo Muratt é formado em Relações Internacionais pela UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), mestre em Ciência Política pela UFF (Universidade Federal Fluminense) e doutorando em Economia Política Mundial pela UFABC (Universidade Federal do ABC).