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POLÍTICA

Michael Löwy completa 84 anos e reafirma marxismo como ferramenta para transformar sociedade

O marxista Michael Löwy. Foto: Divulgação

06 de maio de 2022 - 20h06

O fascinante marxismo de Michael Löwy

 

Por Valério Arcary

O marxismo na América Latina foi ameaçado por duas tentações opostas; o excepcionalismo indo-americano e o eurocentrismo. O excepcionalismo indo-americano tende a absolutizar a especificidade da América Latina e da sua cultura, história ou estrutura social. Levado às suas últimas consequências, esse particularismo americano acaba por colocar em questão o próprio marxismo como teoria exclusivamente europeia(…) Foi o eurocentrismo, mais do que qualquer outra tendência que devastou o marxismo latino-americano. Com esse termo queremos nos referir a uma teoria que se limita a transplantar mecanicamente para a América Latina os modelos do desenvolvimento socioeconômico que explicam a evolução histórica da Europa ao longo do século 19¹. (Michael Löwy)

 

Hoje é dia 6 de maio e Michael Löwy comemora 84 anos de idade. Há dez dias atrás estive com ele na gravação de uma conversa de divulgação organizada pela editora norte-americana Haymarket de Marx em Paris, 1871, lançado, simultaneamente, em português, inglês e francês (Löwy & Besancenot, 2021).

Löwy estava jovial e encantador, lúcido e apaixonado como o conheci, desde meados dos anos setenta.

A variada obra teórica de Michael Löwy confessa, até pela escolha de seus temas de investigação, um compromisso com uma práxis emancipatória e uma pesquisa inventiva.

Inspirado na herança político-programática construída por Leon Trotsky (aquela que, intelectualmente, melhor resistiu aos desenlaces sombrios do século 20) se alimentou de um marxismo enriquecido, entre outros, por Rosa Luxemburgo e Gramsci, Georgy Luckács e Ernst Bloch, Walter Benjamin e Herbert Marcuse e leituras críticas de inúmeros autores não marxistas, para interpretar os desafios colocados para a luta pelo socialismo.

A revolução política e social foi o fenômeno histórico novo mais significativo do século 20, e não surpreende, portanto, que os marxistas que não sucumbiram às pressões sociais hostis, porque mantiveram vínculos com o movimento dos trabalhadores, tenham-lhe dedicado a sua atenção.

Em nenhuma outra época da história as sociedades recorreram, com tamanha frequência, aos métodos revolucionários para resolverem suas crises.

A aceleração histórica das transformações, uma das previsões visionárias de Marx, foi vertiginosa. Encontrou pela frente, contudo, em uma proporção impensável há cem anos atrás uma força de resistência social e reação política que a humanidade, até então, desconhecia.

A expressão mais dramática da contra-revolução política e militar do capitalismo no século 20 foi o nazi-fascismo, nos trágicos anos trinta, mas esteve longe de ser a única.

O ressurgimento de uma extrema-direita com sotaque neofascista na terceira década do século 21 sinaliza que a permanência tardia do capitalismo é ameaça à vida civilizada.

A publicação, ainda em 1970, de A Teoria da revolução no jovem Marx, revelava o interesse de Löwy na pesquisa de um marxismo crítico e independente: sensível às novas experiências de luta dos trabalhadores, mas engajado no resgate da obra dos clássicos; obstinado na defesa dos combates dos explorados e oprimidos, mas adversário do dogmatismo estéril.

A longevidade do capitalismo não diminui a importância dos processos revolucionários que desafiaram as relações sociais dominantes em quatro vagas sucessivas: entre 1917 e 1923, na Europa do Leste e Central, em especial, na Alemanha depois da vitória da Revolução Russa; na sequência da crise de 1929, na Europa do Mediterrâneo, em especial, na Espanha e na França entre 1936-37; depois da, talvez, mais espetacular vitória da revolução mundial no século passado, a desintegração do exército nazista em Stalingrado, nas montanhas da Grécia, Itália e França, onde partigianni e maquis comunistas, com armas nas mãos, incendiaram a vontade de lutar de seus povos contra os fascistas, abrindo o caminho para a descolonização na Ásia e na África; e nos anos que se seguiram ao maio francês de 1968.

Por mais de uma vez, o destino do capitalismo esteve, seriamente, ameaçado. Revoluções anticapitalistas triunfaram na Rússia dos czares ao final da Primeira Guerra Mundial; nos Balcãs, ao final da Segunda Guerra; a ocupação do Exército da União Soviética levou à expropriação burguesa no Leste Europeu; a maior revolução camponesa da história venceu na China, e seu impulso favoreceu vitórias anticoloniais na Coréia e no Vietnam.

Por último, mas não menos importante, na pequena e corajosa Cuba, a ditadura de Batista foi derrotada e com ela a burguesia compradora gusana.

Mas, essas vitórias nacionais, portanto, parciais, não impediram que o imperialismo mantivesse a supremacia mundial, e fosse vitorioso – porque, o que não avança, recua – logrando desviar, conter, congelar e derrotar os sucessivos assaltos da revolução mundial à fortaleza do capital.

O marxismo de Michael Löwy é herdeiro do internacionalismo militante. Ele é brasileiro, mas é também, latinoamericano, francês e judeu, adversário dos impressionismos, sejam derrotistas ou ufanistas.

As sociedades contemporâneas sempre se atrasaram, em maior ou menor medida, em relação à maturidade das condições objetivas que exigiam a sua transformação.

A solução das crises sociais e políticas exige mudanças, e essas podem vir pela via de revoluções ou reformas.

As mudanças podem ocorrer como rupturas sociais provocadas pelas mobilizações de massas, e pela via política negociada de pactos, ou podem ser adiadas, mas não indefinidamente.

A percepção subjetiva da gravidade da crise esteve sempre defasada em relação à gravidade da situação que se deteriora, enquanto na luta de classes a hora do confronto é postergada e se ganha tempo, porque se procura uma posição mais favorável.

A relação de forças sociais entre as classes dominantes e as classes exploradas flutua de acordo com a maior ou menor disposição de luta, da experiência histórica acumulada e da qualidade da organização popular.

Aquilo que se demonstrou intolerável em uma sociedade, foi aceitável em outras. Revoluções não são, portanto, processos prematuros. As revoluções tardias, aliás, foram as mais radicais.

As mudanças por reformas preventivas estabeleceram como padrão que as concessões negociadas pelas classes proprietárias, só se concretizaram como uma tentativa de impedir o perigo de revoluções.

Aquelas nações onde as classes dominadas foram incapazes de impor as mudanças, e onde as classes dominantes foram mais obstinadas – e obtusamente – inimigas das transformações, mergulharam em decadência.

Estas premissas do marxismo foram criticadas por Bernstein, no final do século 19, e depois por muitos outros, como uma ideologia exaltada do progresso, herdeira de uma concepção finalista que tinha a sua raiz na influência hegeliana. 

A Teoria da Revolução no Jovem Marx, de Michael Löwy respondeu à altura ao desafio da crítica. Resgatou a teoria da história elaborada por Marx e Engels a partir do seu núcleo central: a primazia da luta de classes como força de impulso das transformações das sociedades.

As revoluções políticas e sociais não deveriam ser consideradas, em suas palavras, como “o passado de uma ilusão, mas o futuro de uma esperança”, ou seja, como um movimento prático de experiência histórica do proletariado e de seus aliados sociais.

A fórmula marxista de que uma época de revolução social só se abriria quando as relações sociais se convertessem em obstáculos ao desenvolvimento das forças produtivas, não autoriza a conclusão inversa de que as transições históricas seriam consequência direta de impasses econômicos.

A estagnação das forças produtivas e o crescimento das destrutivas foram identificados como condição necessária, mas não suficiente para transformações que exigem rupturas políticas que dependem de muitos outros fatores: em primeiríssimo lugar, o despertar de uma disposição revolucionária de luta daqueles sujeitos sociais em posição de classe para agir.

O marxismo de Löwy bebeu nessa promessa de uma subjetividade auto-libertadora dos trabalhadores, o que ele mesmo reivindicou como um “messianismo” ativo, ou seja, uma aposta de que, mais cedo do que tarde, se unirão as resistências diretas a um discurso estratégico, e esteve distante do economicismo. Comungava com Sartre a defesa de que o marxismo seria o horizonte intelectual de nossa época: “as tentativas de o superar conduzem apenas à regressão a níveis inferiores do pensamento, não além, mas aquém de Marx”².

Na elaboração marxista, passagens de modo de produção seriam impossíveis sem crises estruturais nas relações sociais. Na época do capitalismo financeirizado, pensar o socialismo como o desafio de uma civilização em agonia seria impossível sem que as crises nacionais se desdobrem em crises continentais ou até mundiais. Crises, porém, podem potencializar transformações progressivas ou catastróficas.

Uma época de revolução social deveria ser compreendida, portanto, como um extenso intervalo histórico de lutas com inevitáveis reviravoltas.

Michael Löwy foi um dos marxistas que insistiu que o socialismo seria uma aposta, não uma certeza; uma alternativa, não uma fatalidade; um projeto, não um destino.

Relendo o Manifesto Comunista, Löwy conclui: “Marx, afirma que, a cada época, a luta de classes pode terminar seja por uma reestruturação revolucionária da sociedade, seja pela ruína em conjunto das classes em conflito”³.

O prognóstico é anti-fatalista, mas não é descrente, porque o futuro é uma invenção das lutas do presente, e o marxismo de Löwy não alimenta a prostração, mas o máximo ativismo.

A terrível lentidão das mudanças históricas repousa nessa dialética de desenvolvimento desigual entre os fatores objetivos e subjetivos quando se abre uma época de revolução social.

As sociedades vêem-se mergulhadas em crises porque mudanças são necessárias, mas estas não acontecem quando são necessárias.

Regimes políticos monstruosos, como o nazifascismo, sobreviveram muitos anos, até décadas em alguns países, mas a sua existência não demonstra que eram necessários.

Sistemas arcaicos sobreviveram muito tempo depois de terem entrado em crise. Relações sociais retrógradas se perpetuaram, mesmo quando sua permanência era, historicamente, obsoleta.

O modo de produção que dominou o mundo agrário na Europa depois da desagregação das relações escravistas se alimentava do apetite insaciável de uma nobreza parasitária por terra e servos e belicismo crônico, o que não impediu que o feudalismo resistisse durante séculos, mesmo depois que as relações capitalistas mais dinâmicas pulsavam dentro das sociedades medievais.

O escravismo brasileiro atravessou o século 19, incólume até 1888, mais de meio século depois da independência de Portugal.

Ou seja, a dialética do progresso, nos diz Löwy, animado por Walter Benjamin, é um processo muito mais perturbador do que uma linha ascendente e linear, porque tem duas dimensões, já que as forças destrutivas podem estar se desenvolvendo em proporção e ritmos superiores às produtivas: “Para Benjamin, a revolução não é ‘inevitável’ (…) ele a concebe como uma interrupção de um progresso catastrófico, cujo indicador era o aperfeiçoamento crescente das técnicas militares”.[4]

A história, para Löwy, não foi uma longa elevação da humanidade, com eventuais acidentes de percurso, que à maneira hegeliana, confirmam uma trajetória ascendente, nem, tampouco, um confronto entre sistemas – uma competição “ideal” entre modos de produção mais ou menos eficientes.

Os modos de produção não lutam entre si. São os combates dos oprimidas contra os opressores que fazem a história.

O século 20 não foi somente o cenário de uma luta ideológica entre capitalismo e socialismo, mas a história de uma luta concreta entre classes e entre Estados.

O resultado destas lutas continua sendo um processo histórico inacabado. Se hoje predomina a dominação do capital no mercado mundial, há menos de meio século atrás a indefinição sobre o futuro do capitalismo foi muito grande.

Assim como foram ligeiras, nos anos sessenta e setenta, as ilusões gradualistas, portanto, excessivamente otimistas, em uma possível transição reformista, são hoje perigosas as conclusões pessimistas que se apressam em retirar conclusões céticas sobre o futuro do socialismo depois da restauração capitalista do início dos anos noventa.

As sociedades se transformaram porque mudanças se demonstraram imprescindíveis, mas não o fizeram quando era necessário. Um atraso inevitável separou as crises sociais e políticas das condições em que se encontraram soluções para as crises.

O marxismo de Löwy realizou, também, um resgate da dimensão utópica do socialismo como desafio: “O que as leituras positivistas de Marx não compreendem é que a emancipação histórica, diferentemente da previsão física, exprime-se num projeto estratégico”. [5]

A revolução é, paradoxalmente, um processo que resulta de uma acumulação de forças que foi prevista e construída conscientemente, mas é também uma surpresa histórica, algo de intempestivo.

O determinismo economicista não é marxista, nem é histórico, e seu endereço político tem sido o gradualismo e o nacionalismo.

Não é marxista porque a duração do capitalismo remete mais às peripécias e reviravoltas da revolução mundial, do que a um suposto vigor econômico irrefreável do capitalismo.

Não é histórico porque retira a avaliação do capitalismo do contexto de crise crônica na qual está mergulhada a sociedade contemporânea, há quase cem anos, com suas guerras mundiais entre imperialismos rivais, suas guerras regionais de recolonização, suas crescentes desigualdades sociais, o perigo de catástrofe ambiental e a ameaça de holocausto nuclear.

As consequências políticas do reducionismo teórico fatalista foram, invariavelmente, o recuo para diferentes variedades de possibilismo socialdemocrata nos países imperialistas, e para novas versões de nacional-desenvolvimentismo de capitalismo regulado nos países periféricos.

As sociedades não se transformam na medida em que a mudança é necessária. As mudanças econômico-sociais em condições políticas reacionárias, por mais necessárias que sejam, parecem impossíveis. A revolução parece, politicamente, uma extravagância de sonhadores, ou visionários. Esta antecipação histórica é, no entanto, o projeto intelectual do marxismo.

1. LÖWY, Michael, O marxismo na América latina, uma antologia de 1909 aos dias atuais. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2000, p.10.

2. LÖWY, Michael, A teoria da revolução no jovem Marx, Petrópolis, Vozes, 2002, p.18.

3. LÖWY, Michael, Marxismo, modernidade, utopia. São Paulo, Xamã, 2000, p.81.

4. LÖWY, Michael, Ibidem. São Paulo, Xamã, 2000, p.83.

5. LÖWY, Michael, A teoria da revolução no jovem Marx. Petrópolis, Vozes, 2002, p.22.

 

Valério Arcary é doutor em História pela USP (Universidade de São Paulo), professor aposentado do IFSP (Instituto Federal de São Paulo) e autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã).

 

 


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